Velhas Amigas - final
Yelena, que aprendeu com Lenin a olhar para todos os lados ao mesmo tempo e lamenta até hoje não ter ensinado o mesmo a Trotsky, alertou para a urgente necessidade de desacreditar o governo. Não entendia, mesmo sendo bruxa, qual era o link que mantinha um governo tão ruim, capaz de fazer voltar à tona debates encerrados na Revolução Francesa, como a separação entre igreja e estado, e o permitia manter tantos fiéis. Concordava com o que disse NIetzsche: “o fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos”, mas não se conformava. Seria preciso investir num tipo de guerra cultural para a qual elas normalmente não tinham paciência, apesar da secular moderação. Dois ou três feitiços bem encaminhados e tudo estaria no lugar, imaginou.
Pena que não seria tão fácil, apesar do planejamento.
Na pesquisa prévia, as bruxas tinham diagnosticado focos importantes de um conservadorismo doentio, com tendência fascista, espalhados pelo Brasil todo, como uma metástase. Havia áreas já completamente tomadas e outras em desenvolvimento, com forte correlação com as zonas rurais mais desenvolvidas e com os locais onde ocorriam atividades ilegais. Tráfico de drogas, milícias armadas, garimpo ilegal, racismo, desmatamento ilegal, lavagem de dinheiro, contrabando, grilagem de terra pública, corrupção eleitoral, pedofilia, feminicídios, assassinatos políticos, assassinatos de pessoas LGBTQIA+, assassinatos de menores, assassinatos em geral, entre outros, apresentando interação positiva – e paradoxal – com o discurso mais moralista. Lembraram logo das antigas delegacias de costumes, criadas para reprimir a vadiagem, a prostituição, o aborto e outras mazelas que incomodavam a igreja e a sociedade conservadora.
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Mas ao menos a prostituição e o aborto eram muito caras à maioria dos conservadores desde os tempos mais remotos. E elas testemunharam. Acompanharam inúmeros abortos de filhos e filhas de padres e até papas. E muitos mais ainda dos grandes senhores, desde os faraós até os senhores feudais, passando pelos imperadores romanos e chegando aos Napoleões e aos diversos reis católicos de Espanha e Portugal. Ninguém escapava. Czares, presidentes, atores famosos, grandes artistas. Uma loucura só. E era assim também com a corrupção em todas as suas variantes, com o tráfico, com o contrabando, com os assassinatos. Forte relação com o poder e mais ainda com o poder autocrático, como se mostrava esse do Brasil da hora. Mas elas eram bruxas e nada impediria que o projeto fosse à frente. Nunca recuaram. Nem na peste, nem nas grandes guerras!
- É caso de químio e rádio, disse Shirley, que gostava de medicina. E com prazo exíguo e objetivos claros. O principal objetivo nem focava na qualidade de vida dos brasileiros, que por sua conta e risco tinham transformado o país num lamaçal proto-fascista, na onda do maremoto de fakenews que vinha alagando o mundo todo. No Brasil, especificamente, existia uma máquina institucional que tinham recém descoberto, uma tal de lavajato, que criou e fomentou um ódio mortal da população a qualquer coisa que se situasse, ainda que levemente, à esquerda do espectro político. Os resultados eram visíveis agora, algum tempo depois, e precisavam ser combatidos para que o ambiente estivesse minimamente convidativo para a grande convenção. Milhares de bruxas chegariam simultaneamente ao Brasil e a comissão organizadora gostaria de mostrar um país com grandes possibilidades. Não esse que se mostrava agora, armado, hostil e antipático, pra dizer o mínimo.
Playlist da Sustentabilidade e Florestas, no Brasil, na Spotify.
A comissão se reuniu rápida e objetivamente após ter juntado os elementos necessários ao início da ação. Shirley e Hadassah enfeitiçaram a esquerda e a fizeram sair à rua, onde acreditavam que ocorreria o verdadeiro embate pelo controle da situação. Shana e Kuela vasculharam os arquivos policiais e acharam uma vasta bibliografia sobre alguns dos principais nomes da direita ascendente. Mesmo - e principalmente - para surpresa das experientes feiticeiras, dos mais novos. Seria preciso eliminar essa gente.
Magicamente, claro, de modo a não dar chance para o azar e para a caneta de eventuais perdões presidenciais. Sentiam as instituições enfraquecidas, o que era um elemento a mais. As polícias definitivamente contaminadas pelo malcheiroso ar da tortura, do ataque aos direitos humanos e da eliminação do inimigo, como numa estúpida guerra contra seu próprio povo. Nas forças armadas nunca confiaram, salvo no isolado episódio da Revolução dos Cravos, que contou com o apoio irrestrito dos militares portugueses, que desafortunadamente - e quase simultaneamente - faziam barbaridades no ataque às colônias em outros continentes, especialmente na África. Mas no Brasil o nível do comando era estupidamente pior que qualquer outro jamais visto. Mapearam uma meia dúzia que tinha sido alçada ao primeiro escalão do governo e espantaram-se como nunca antes. Um imbecil desses não seria sequer recebido por De Gaulle ou Eisenhower. E nem pelo mais amaldiçoado dos nazistas ou pelos comandantes japoneses que ordenaram Pearl Harbor. Eram de uma indigência intelectual que apavoraria até os piores alunos das piores escolas militares do mundo, mesmo não havendo, da parte delas, qualquer expectativa com a qualidade da formação intelectual oriunda de escolas militares.
Concluíram que haviam tergiversado demais e a situação tinha chegado ao nível da emergência. Estavam num país que havia sido há pouco tempo uma das maiores economias do mundo e que num piscar de olhos tinha se transformado num pária planetário, mesmo com todas as potencialidades vistas por elas na visita de prospecção. Tudo aconteceu numa velocidade improvável mesmo para elas, que poderiam mudar a história da humanidade com um movimento de mãos, com ou sem varinha de condão.
Foi então que, finalmente, Akemi, a caladíssima bruxinha japonesa, cuja notoriedade só cresceu depois da Segunda Grande Guerra, quando não conseguiu evitar o ataque a Pearl Harbor, mas alterou os planos americanos de atacar Tóquio com a bomba atômica. Conhecedora de seu povo, sempre desconfiou que eles não se renderiam de outra maneira. Lamentava muito os ataques a Hiroshima e Nagasaki, mas era a história acontecendo e ela não poderia intervir mais. Acabou absolvida, mas se impôs por conta própria um silêncio que já durava quase oitenta anos. Pois bem, Akemi foi taxativa:
- Garotas, não temos tempo para conversar. Vou tentar ser tão clara quanto possível! O melhor agora é partir para a eliminação seletiva de todos os responsáveis por este estado de coisas. E ainda é possível combinar outras intervenções necessárias.
- Vocês sabem que o Brasil tem uma das maiores biodiversidades do mundo, né? Como vimos, a coisa anda feia no cerrado, todo coberto de soja e milho. Difícil encontrar um veadinho que seja, uma anta, uma onça. Tá ruim até pras sucuris. Eu proponho que a gente transforme esses nojentos todos em bichos pra repovoar o cerrado e de quebra a Amazônia, a mata atlântica, a caatinga...
- Tenho até uma proposta de sistemática, de acordo com as características de cada grupo: Todos os fortões viram veadinhos campeiros, até por causa do poder simbólico. Não vejo a hora de ver esse último, o da tornozeleira, saltitando...
- Os militares, também apelando pra simbologia, viram antas. A anta sofre grave risco de extinção. E esses milicos velhos e limitados, ainda que as antas não mereçam a comparação, vão ficar bem mais simpáticos.
- Os jornalistas que repercutiram aquela paspalhada toda da tal lavajato virarão emas, com aquele pescoção correndo pelos campos. O segundo escalão todo pode virar tatu e tamanduá, bichos que são pouco vistos mesmo.
- Pra família de milicianos eu tenho outros planos. Pensei na Mata Atlântica. Aqueles miquinhos onipresentes no Rio de Janeiro vieram contrabandeados do Nordeste, por gente mal intencionada, claro. Mais ou menos como o capitão deles, que veio de São Paulo e vem se esforçando pra destruir o Brasil idílico a partir do Rio, mas agora em Brasília. Sugiro transformar a família toda em bichos preguiça e soltá-los nas matas da Tijuca. Inofensivo e, quando pequenos, tem sempre a chance de um gavião pegar.
- Os demais deputados e senadores da base deles terão uma missão nobre, depois de devidamente alcançados por nossos feitiços: vão semear araucárias no Sul. Vamos transformar todos em gralhas azuis! Para os ministros eu tenho propostas bem especiais, porque eles são especiais. O que vocês acham de transformarmos todos em borboletas? Teremos a garantia de pouco tempo de permanência por aí, de atividade benéfica, com a polinização de flores, e a possibilidade de eles deixarem finalmente o ambiente mais agradável. Borboletas são insetos muito queridos. Vou cuidar pra que nenhuma deixe lagartas perigosas ou pragas como descendentes. E ainda alimentam os pássaros.
Tuninho Galante e Marceu Vieira, no Youtube.
As discussões nem se alongaram muito. A complexa - mas objetiva - proposta de Akemi foi recebida com festa pelas amigas. Ela levou quase oitenta anos pra abrir a boca, mas foi logo lacrando, como dizem por aí. Seria uma intervenção grande, sem dúvida, mas não havia qualquer erro aparente de diagnóstico e as sugestões foram precisas. Lana, entusiasmadíssima, notou e comentou que nenhum deles seria convertido em predador. Akemi agradeceu a observação e pontuou que, com a oferta de alimento extra, seria criada uma situação de maior conforto para o desenvolvimento dos predadores. Não seria prudente dar algum poder a essas bestas novamente. Melhor que eles servissem de alimento a onças, lobos guarás, jacarés, piranhas e sucuris, garantindo a sustentabilidade do sistema. No “mundo dos humanos”, bastava um outro feitiço, cirúrgico, para evitar que notassem a falta deles. Isso atingiria, de acordo com cálculos pouco conservadores, algo em torno de 30% dos brasileiros.
Csilla, muito atenta, lembrou que não havia referência aos procuradores e juízes que deram sustentação a toda a confusão. Akemi ficou de pensar logo. Ao menos um viraria marreco, óbvio, mas sobre os demais ainda não tinha elaborado nada.
Tomadas as decisões sobre a intervenção ecológica que fariam, o grupo mandou fez contato com reforços para definir as ações. Sacerdotisas locais, originárias das áreas de Cerrado e Amazônia, definiriam os quantitativos de animais a serem destinados para cada área. A mesma coisa ocorreria no Sul com as gralhas. No caso das preguiças no Rio, excepcionalmente, Brigitte, a francesinha, ia conduzir pessoalmente a reintrodução junto com técnicos do sistema de unidades de conservação. Descobriram na pesquisa que o pessoal do ICMBio é odiado pelo governo, o que foi entendido como um ótimo sinal.
Alguém levantou a possibilidade de impacto negativo no agronegócio brasileiro, que poderia ser prejudicado pela redução das áreas, com reflexo no conjunto da população. Após uma breve reflexão, Kuela, assertivamente, disse que havia uma grande quantidade de terras desmatadas e não utilizadas, ou subutilizadas, com baixíssima densidade de pecuária, utilizada apenas como reserva de valor. Do mesmo modo, algumas áreas cultivadas eram tão absurdamente grandes que sequer seriam notadas reduções. E se fosse o caso, não havia nada que um bom feitiço não resolvesse.
O quadro na Amazônia era assustador. A maior parte das áreas desmatadas não servia a qualquer propósito produtivo e nem disfarçava isso. Depois de retirada a madeira, era entregue à erosão. Outro horror eram as áreas de garimpo, muitas delas no interior de terras indígenas, hoje contaminadas com mercúrio e infestadas de garimpeiros estimulados pelo governo a cometer crimes.
Akemi interveio novamente, definindo destino para os procuradores e juízes e também para os garimpeiros ilegais, únicos pobres que seriam objeto de feitiço. Os advogados iam virar ararinhas azuis. A população anda muito baixa na caatinga. E os garimpeiros seriam convertidos em avoantes, as pombas da Asa Branca, aquela canção sensacional de Gonzagão. O nordestino adora, tem importância ecológica no Nordeste e mantém o espírito aventureiro e viajante dos garimpeiros, que só ganharam essa deferência porque são pobres.
Gina, a coordenadora da missão de prospecção, foi encarregada de relatar ao Conselho Universal as providências que precisavam tomar para garantir a conferência mundial no ano seguinte. A Bruxa Rainha, a nigeriana Ayana Ayo Fayola, a única que podia ter três nomes, e de quebra a única rainha a permanecer mais tempo no trono que Elizabeth II, foi condescendente com as meninas, como ela as chamava há milênios, desde que eram mesmo. Disse entender profundamente a situação do Brasil e que acompanhara cada detalhe da expedição, cada tomada de decisão e que não vira qualquer desvio de conduta ou erro de avaliação nas medidas adotadas. E ainda elogiou especialmente Akemi, por voltar a falar, e Lana, pelo desempenho no carnaval. Esforçava-se para tirar o ranço europeu da Sociedade das Bruxas, romper com o formalismo.
Após a conversa, as amigas saíram para um chope no Leblon, antes de tomarem o rumo de seus locais de origem.
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O evento seria um sucesso. O Maracanã estava pronto para receber as delegadas da conferência. Faltava definir se fariam a conferência no modo invisível, sem que os demais humanos notassem. Para elas não fazia a menor diferença. Sempre eram visíveis entre elas. Isso era um único senão para as reuniões no ambiente urbano. Juntar muitas certamente vai chamar a atenção das pessoas. O número de participantes era impreciso, mas enorme. Seria fácil lotar o Maracanã mas, com todas visíveis, o impacto seria inevitável. E apesar da facilidade do teletransporte, que poderia levar todas para um sono tranquilo em casa, onde quer que vivessem, a comissão tinha mapeado pousadas no Pantanal para hospedar cada uma. Não queriam perder o espetáculo de ver jacarés, sucuris e onças se fartando com a comida extra que enviaram pra lá.
De qualquer forma, no fim da expedição de prospecção, estavam exaustas. O encontro seria lindo, florido, com borboletas e pássaros voando e cantando. Mas o Brasil é muito cansativo.
Nos bastidores, a Groenlândia desponta como sede da conferência seguinte. Não acontecia nada muito impactante por lá há milhares de anos, mas agora o gelo tá derretendo e elas tomaram gosto por fazer intervenções pontuais...
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