Velhas Amigas, parte 2
Uma proposta de Wu, a chinesa do grupo, visava à garantia do sucesso da conferência no país. Antes, fez uma longa reflexão. Lembrou que elas não interagiam com governos, mas tinham evitado a Alemanha nos períodos mais críticos, a Itália do Duce, a Espanha de Franco, Portugal do Salazar, a América Latina dos ditadores títeres da CIA. Stalin e Fidel também foram boicotados. Só voltaram a Cuba quando começou o período especial, com o fim da URSS e a crise instalada. Tinham consciência que a razão principal da crise era o boicote norte americano e entraram em campo para ajudar. O povo não podia pagar por aquilo. Sempre secretamente, claro. Também não gostavam de se reunir nos Estados Unidos, apesar da “liberdade”. Os lugares que mais adoravam lá, os Everglades, o Grand Canyon e o parque de Yellowstone, são cercados por gente muito conservadora nos costumes, armada até os dentes e defensores da guerra, coisas que nunca foram do feitio delas.
Quando escolheram o Brasil, ainda vieram com a mística do Patropi. Brigitte, aliás, jura ter tido um affair com o Jorge Ben, em tempos imemoriais, antes da numerologia que o levou a virar Benjor. Logo na chegada notaram, en passant, que existia bem menos Amazônia, mata atlântica e cerrado do que nas visitas anteriores, e poderiam até ajudar nisso, sem fazer alarde. Mas o que as preocupava verdadeiramente era a orientação política reinante. Nas pesquisas prévias, descobriram um conservadorismo que não tinham notado nos habitantes primitivos e nem nos nordestinos do alvorecer do século XX. Particularmente no Leblon, havia forte reação às medidas populares que haviam sido adotadas há pouco tempo por um governo progressista", de grande popularidade. O atual governo, de extrema direita, esforçava-se por apagar a memória daqueles bons momentos.
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A proposta de Wu, acostumada às monumentais transformações pelas quais a China passou ao longo do tempo, da grande muralha à pós-modernidade tecnológica, do Genghis Khan ao Deng Xiao Ping, passando pelo MaoTse Tung, era que, pela primeira vez, influenciassem no futuro das coisas, de modo a garantir que o ambiente estivesse “saneado” para a realização do evento. Em pleno século XXI não havia mais espaço para incertezas civilizatórias. A extrema direita já tinha se mostrado não só ineficaz no gerenciamento das crises que levam à evolução da sociedade, mas também evidenciara o que todo mundo já sabia: na maioria dos casos, ela mesma criava crises que redundavam em retrocessos absurdos. Ouviram histórias horríveis sobre incentivo ao desmatamento, sobre o desmonte da rede de cultura nacional, apoio ao garimpo em terras indígenas, estímulo à cultura das armas. O Brasil cultivava uma mítica de país de paz. A verdade, no entanto, é que a história tinha sido violenta, que o catolicismo e a monarquia portuguesa fizeram horrores aqui. Kuela Zuri até interveio lembrando a escravidão e a monstruosidade do tráfico negreiro, o maior comércio do Atlântico durante muitos anos. Mas elas, mesmo em casos assim, nunca se dispuseram a intervir. Achavam que a história tinha de seguir seu curso natural.
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O uso dos poderes era limitado às suas próprias vidas e gente das relações. O uso indiscriminado poderia inclusive ser punido com a perda dos poderes e da imortalidade. O Conselho Universal da Bruxas era implacável, qualquer deslize era investigado à exaustão. A diferença é que inquérito aprofundado, no caso das bruxas, não era sinônimo de lentidão. O rito era rápido, sumário e irrecorrível. Havia mesmo casos de punição prévia. O controle do espaço-tempo atuava a favor da acusação, sempre. Pela primeira vez, no entanto, Wu, que era das mais conservadoras, zeladora dos costumes, integrante eterna (mesmo!) do Conselho de Ética e exemplo quase arquetípico da icônica paciência oriental, parecia decidida a ir mais longe. Propunha uma intervenção com alteração de rumos históricos, valorização da cultura local, dos povos originários, da produção de alimentos em conformidade com as regras naturais, sem comprometer a água, o solo e os animais, respeito à liberdade religiosa em todos os campos, incentivo à ciência, que em última análise, na leitura dos mais conservadores, deriva de práticas antes adotadas pelos feiticeiros. Era urgente derrubar esse governo indigente e violento. E trazer de volta o Brasil para a posição de destaque que teve no início do século XXI, quando todos queriam vir pra cá.
A passividade com que encararam o recente pleito francês fez com que ficassem todas de cabelo arrepiado com o resultado. Por pouco, a filha do monstrengo reaça não leva as eleições. Torceram muito pelo Mélenchon, mas não moveram uma palha, confiantes que são na democracia francesa, bem mais consolidada. Mas não se conformam com o bonitinho, mas ordinário Macron. Brigitte, aliás, já o apelidou de Dorià. Referência óbvia, piada ruim, ela reconhece, com um sorriso amarelo.
O debate foi acalorado e frutífero. Uma comissão, formada por Csilla, Yelena e Aisha, foi designada para encontrar os pontos vulneráveis do governo e atacá-los com feitiços pontuais, mas definitivos. Lana vai permanecer em Brasília, contra a vontade, por um período indefinido, até que tenha todos os elementos necessários a um feitiço final apoteótico. Isso poderia durar séculos, mas desta vez tem certa urgência. Lembrava do trabalhão que teve em Roma. Especialmente porque Gina estava envolvida com Calígula e a queda do Império não era uma unanimidade entre as bruxas. Naquela época, foi preciso um reforço importante de outras colegas do norte. Tempo bom de cooperação. Saudades. As outras meninas vão trabalhar na elaboração de um plano de governo que resgate a autoestima do Brasil. Já diagnosticaram apoio às mudanças em todos os setores da sociedade, incluindo igrejas, empresariado e mídia.
A falta de representação local confiável é um limitador grave para os planos. As primeiras bruxas imortais brasileiras ainda estão na fase de experiência.
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O exacerbado catolicismo português complicou muito a formação de quadros. Só com o início da imigração de outras partes do mundo, principalmente com italianas e alemãs, foi possível iniciar um trabalho. Houve importante reforço com a chegada das japonesas e do pessoal do leste europeu. As africanas, de grande reputação, foram muito prejudicadas. Sua origem limitava as ações em território nacional, sob domínio católico e racista. E a maioria das mais poderosas e antigas não veio, tendo conseguido escapar sem grande dificuldade dos abomináveis traficantes de escravos, tanto africanos (traidores!), como portugueses e ingleses ou holandeses. Kuela Zuri tem muita informação a respeito e não se cansa de lembrar. O fato é que o desenvolvimento das colegas no Brasil foi prejudicado e esses 150 anos de imigração são insuficientes para a formação de recursos humanos de alta performance, como as bruxas devem ser.
Deste modo , não sobrava outra possibilidade que não fosse a ação direta das lideranças na construção de um ciclo virtuoso, rumo à conferência anual, que já nem tinha mais numeração ordinária. Tinham parado a contagem na 4.352ª reunião, quando uma alteração no calendário chinês conflitou com o judaico e a comissão da época achou por bem fazer ajustes. Hadassah, então representante de Canaã no exílio, discordou da alteração, mas foi voto vencido e desistiu, tendo inclusive saído do Egito antes da encrenca toda com Moisés, sapos, gafanhotos, Mar Vermelho, etc. A representante chinesa na diretoria da época, Yu LI , foi taxativa, tendo sido banida poucos anos depois, quando, seduzida na Grécia por Platão, dedicou-se a estudar o Mito da Caverna e, tomada por uma crise de racionalidade, abriu mão de seus poderes, sendo substituída pela ponderadíssima Wu, uma das bruxas mais discretas e queridas de toda a eternidade, sempre misteriosamente sorridente.
No atual estado de coisas, Hadassah considerava que poderia ser útil junto a uma parte dos evangélicos, que haviam adotado uma práxis estranhamente judaica, como teve oportunidade de observar numa construção gigante em São Paulo, chamada Templo de Salomão, cujo patricarca (??) inclusive ostentava vasta barba e uma cópia mequetrefe da Torá. Ela também adorou o heliponto em cima do templo. Um aperfeiçoamento sempre bem vindo, já que Salomão nem desconfiava que os homens viessem a voar um dia. Pena que normalmente usam pra carregar dinheiro em helicópteros, coisa da qual talvez Salomão não se orgulhasse. Mas bruxas sempre respeitam os costumes locais.
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Uma coisa que descobriram com certo atraso foi a força das sacerdotisas originárias no Brasil. E isso precisava ser incorporado ao projeto. Entre uma reunião e outra, visitaram povos no Xingu e no Sul, onde se surpreenderam com rituais guaranis pouquíssimo relatados. Era tudo muito mais bonito e animado que os rituais europeus, sejam eles no Stonehenge, onde as Wicca fazem eventos sistematicamente, ou sob a Aurora Boreal, na Noruega e Finlândia. Os rituais europeus se caracterizavam pelo silêncio cerimonial e ar solene, enquanto o negócio aqui e na África tinha música, muita dança, comida e gente feliz. Seria preciso reaprender muita coisa para o trabalho. Pra continuar a aclimatação, cada uma voltou do Sul com uma cuia de chimarrão. E do Mato Grosso com uma cuia de tereré. Alternar frio e calor seria uma boa metáfora do Brasil. Curiosamente, encontraram costumes parecidos nos dois lugares, especialmente entre os não originários. Parte dos brancos do Mato Grosso parecia muito com os do Sul, como se tivessem vindo de lá há pouco. E mais que isso, deixavam a impressão de que gostariam de trazer a paisagem junto, enchendo de soja e milho um local que tinham visto, séculos antes, cheio de onças, veados, emas e tamanduás. Acharam estranho e muito ruim, mas isso também podia ser útil para a transformação rápida que precisavam fazer.
Rio de Janeiro, maio de 2022
(Continua e termina no próximo domingo)
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