TOMBO
O tombo foi daqueles cinematográficos. Tudo se passou numa fração mínima de tempo, mas quem assistiu tem fixa nas retinas a cena inteira em quadros, frame por frame, em câmera lenta.
Ele vinha descendo as escadas do fórum com pastas de arquivo, celular, paletó, maleta 007 e tentava ler um papel avulso que teimava em não se manter na posição correta.
O cadarço desamarrado do sapato de cromo alemão foi o pavio que detonou o evento. O pé direito pisou no cadarço esquerdo e impediu que o pé esquerdo completasse o degrau seguinte, abaixo. A perna direita tentou compensar o alcance e o peso do corpo foi projetado no ar. A gravidade fez a parte que lhe coube e jogou o corpo e os objetos em direção ao chão, no caso o meio da escada. O rolamento foi involuntário, mas parecia ensaiado. A tentativa desesperada de recuperar o equilíbrio fez com ele se desfizesse dos objetos e os lançasse fora antes do final do tombo. A queda se completou com um ruído surdo e o choque do nariz com o chão ao pé do primeiro degrau foi precedido pelo encontro de uma das mãos com o piso de granito, o que levou à fratura de ambos. No caso do nariz houve uma complementar ruptura de vasos e o sangue sujou o linho azul claro da camisa importada. O cabelo, antes impecavelmente penteado, agora apresentava pequenos folíolos de flamboyant misturados aos fios desalinhados aleatoriamente. A folha de papel avulsa chegando por último ao chão, naquela queda lenta, contando só com a resistência do ar, sem ser apressada ou ter seu caminho desviado pela influência do vento, funcionou como um gran finale.
As pessoas se dividiram. Nestes casos, o inconsciente oscila fortemente entre ajudar e aplaudir, tamanho o efeito cênico. Não faltaram risadas contidas, entre o verdadeiro prazer que por muitas vezes emana da desgraça alheia e o nervosismo natural diante de um acidente e do risco de consequências mais graves do que dedos e narizes quebrados. A solidariedade se impôs. Quem passava ou quem era fixo do local, como jornaleiros e ambulantes, acudiu da mesma forma. Advogados e advogadas, estagiários, policiais, mendigos. Ninguém ficou indiferente ante o corpo estatelado no chão, buscando forças para se levantar novamente. O sangue insistia em escorrer e a tentativa de manter a elegância não combinava com os objetos espalhados e com a roupa agora suja. Voluntários recolheram as coisas, surgiram lenços de papel, ombros amigos, gente interessada e verdadeiramente preocupada.
Mas as cenas nem sempre se encerram em si. O papel solto, último a cair no chão, foi recolhido por um passante fortuito, que se dirigia ao fórum por motivo mais prosaico, visto que não participaria de audiência, não faria sustentação oral no tribunal do júri, não era juiz ou promotor, nem testemunha era. Era o vigia do estacionamento dos desembargadores. Talvez o mais graduado dentre os vigias de estacionamento, mas apenas um transeunte naquele contexto. O fato é que, de posse do papel avulso, cedeu à curiosidade e leu o conteúdo.
Poderia ser qualquer coisa. Talvez uma convocação, um aviso da escola das crianças, um boleto impresso pra pagar, uma lista de supermercado. Mas não era. Era uma comunicação do juiz do plantão judiciário. Uma comunicação de medida protetiva, obrigação de afastamento da cônjuge. O deferimento de medidas protetivas é obrigatoriamente precedido de denúncia grave, que envolve ameaça ou agressão consumada. Ninguém ali o conhecia. Não era possível afirmar nada imediatamente, mas era um sinal amarelo brilhante. A cara de bom moço, a roupa de grife, a barba bem feita e o relógio caro não livram a cara de ninguém assim no automático. Antes condenam. Uma parte dos interessados –justamente os mais exaltados - se desinteressou na hora. Alguns insistiram. Entre o “que se foda” e o “vamos ajudar” há muitas nuances.
Conseguiu levantar e foi imediatamente arguido sobre o conteúdo do papel. Como assim? “Você bate em mulher?”, perguntou uma promotora que havia se juntado ao grupo.
A resposta veio em tom baixo e envergonhado: “Eu perdi o controle...” Obviamente não convenceu ninguém. Nova debandada. Sobraram dois homens que não podiam sair dali por dever de ofício. Eram o engraxate, cujo ponto ficava em frente ao ocorrido, e o jornaleiro da banca que inclusive cedia espaço para o engraxate guardar sua pequena tralha profissional.
A essa altura, um pouco de sangue ressecado se acumulava na roupa e em cavidades do rosto do acidentado, que sozinho tentava se recompor e era observado pelas duas últimas testemunhas do tombo épico.
- O cara bate na mulher! , disse o engraxate pro jornaleiro.
- Devia cair de novo!, respondeu o jornaleiro.
- Todo arrumadinho, mas não vale nada!
Um pombo, provavelmente testemunha involuntária e privilegiada de toda a cena, neste momento defecou sobre o agora já parcialmente recomposto agressor caído.
- O pombo cagou nele!, zombou o engraxate.
- Bem feito!, o jornaleiro completou.
- Se pudesse, eu mesmo fazia o serviço do pombo.
- Quer saber? Agora eu vou ficar de olho nesse pessoal que sai aí do forum. Tem uns doutores gente boa, umas doutoras muito educadas e tudo. Mas tem uns que Deus me livre.
- E olhando não dá pra saber, né?
- E não é?
- Mas vai que outro cai aqui?
- Você acha que todo mundo que cai tá devendo na justiça?
- Eu não acho nada, mas a gente procura saber na hora.
- Eu acho é que você é doido!
- Posso ser, mas não bato em mulher!
- Nem eu!
- Bora trabalhar que a gente ganha mais.
- Bora.
Rio de Janeiro, junho de 2023.
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