O Dentista e o Apocalipse
Tive que ir a um especialista de canal em San Diego. O sistema médico e dentário, com seguro de saúde ou não, está super caro aqui nos Estados Unidos e muita gente vai se tratar no Mexico, mas eu tinha que começar o processo.
Quem me mandou pro especialista foi a primeira dentista que vi, uma mulher bastante antipática que dava a honra da sua presença por alguns minutos em cada uma das salas da sua clínica e só se dirigindo `as suas auxiliares pra fazer rápidos diagnósticos das radiografias do cliente, enquanto este ou esta esperava na cadeira como se não fosse nada mais que um objeto de laboratório. Naquela clínica e em muitos lugares que continuam a se multiplicar, o elemento humano e pessoal foi completamente abstraído pela parafernália tecnológica. Enquanto me ignorava, a doutora se comunicava com a higienista em “tecnobiologês”: número quatro (dente número quatro) tem “xxxx” e precisa fazer “yyyy”, numero 7, “zzzz” e mais uma radiografia 3 D, etc etc.
Nossa, será que não tinha sido bastante eu já ter aturado a explicação que aquela higienista já tinha me dado sobre as aparelhagens de radiografar a que fui submetida, num tom solene de quem discorresse sobre uma obra de arte de que se orgulhava? “Aquilo vai girar, aquela luz vai acender... o botão vai apitar...” Por favor, me poupe! eu pensava, sabendo que tudo que era preciso era me dizer pra ficar quieta enquanto o “trosso” fazia o seu serviço.
Na sala em que ela fez a limpeza dos meus dentes, tinha uma tela de televisão gigante no teto e outra na parede em frente mostrando programas diferentes num verdadeiro bombardeio de assuntos e imagens. Na posição em que botou minha cadeira, eu podia ver o vídeo do teto mostrando uma serie sobre os parques nacionais americanos, comentada por Obama. Estava até interessante, mas eu não aguentava mais ouvir a voz perfurante daquela mulher me fazendo perguntas idiotas e botando a cabeça bem entre o meu rosto e o do Obama ali no teto, impedindo-me vê-lo direito.
Eu tinha pedido que me dessem nitroso, aquele gás maravilhoso que faz a gente se deleitar com os próprios pensamentos seja lá quais forem, desligando-se do corpo e da própria boca aberta, esticada, e remexida pela higienista. Cobram o gás aparte, mas pra mim tudo bem porque ele faz a chatice de ir ao dentista virar um programa. Só que não me deram quantidade que fizesse diferença, e eu reclamei mais de uma vez. Foi por isso que a voz metálica dali por diante não parou de perfurar meus ouvidos, perguntando se eu já “estava” calma, isto é, sentindo o efeito do gás. Escondendo minha irritação com a esperança de que este me fosse aumentado, eu tinha que dizer que estava na mesma.
“Continua a respirar, vai mudar”, a higienista aconselhava, como se eu tivesse a opção de não continuar a respirar.
Mas em relação ao gás, nada mudava. Na terceira vez em que respondi estar na mesma, a mulher agiu como se o tivesse aumentado, mas na mesma continuei até a limpeza acabar. Obviamente me roubaram; tenho experiencia com o nitroso.
Minha cadeira voltou pra posição normal e fui obrigada a ver a televisão da parede em frente mostrando a vulgaridade de barbáricos abusos da tecnologia. O programa se chamava “arte na natureza”, e constava de imagens gigantescas de flores diferentes se abrindo, cada qual em sua vez e tomando o vídeo todo. As cores dessas flores eram tão fortes e seus tamanhos tão ampliados que nada mais lhes restava da sutileza e delicadeza de ser flor. Quando o centro delas ia se abrindo fazia lembrar uma concentração de pequenas minhocas se retorcendo e se transformando em outras formas igualmente estranhas e grotescas.
Diante daquilo, pensei que assim como o paciente é despojado de sua humanidade, a natureza se torna absurdamente despojada de sua naturalidade. Tamanha adulteração era chamada de “arte”, pois ninguém mais se atreve a diferenciar a opulência de efeitos tecnológicos da beleza artística, numa época em que a tecnologia passa de ser “meio” a ser “fim”, e a exatidão dos processos eletrônicos e mecânicos engole o imprevisto, e com ele, o coração da humanidade. Deus que a perdoe!
Enquanto eu via aquelas imagens com nojo, as duas mulheres ali de branco, dentista e higienista, super auto importantes na sua comunicação, decidiam o meu futuro tratamento. Quando fui pagar por toda a papagaiada daquela primeira consulta, já sabia que seria a última.
Comecei a considerar ir ao Brasil para o tratamento, mas tinha um dente que não podia esperar e que fez a dentista me indicar um especialista. Fui procurar o cara na semana seguinte, enquanto praguejava a tirania do que nos serve através de nos escravizar. De saco absolutamente cheio desse veneno, cheguei à clínica de S. Diego.
Boa surpresa!
Pra começar, nem o cara nem sua ajudante tinham vozes metálicas, e também não eram auto importantes. Antes que ele aparecesse, essa ajudante “mandou ver” no gás nitroso. Eu já estava na maior felicidade quando me perguntou se eu gostaria de assistir um filme durante o tratamento. Feliz, sem, portanto, esquecer a situação ameaçadora em que se encontra a alma humana, senti-me inspirada a ver de novo “Don’t look up”, aquele filme apocalíptico com o Di Caprio e Merryl Streep, que dá uma excelente interpretação da política corrupta e inconsequente deste país no governo de Trump. Não tome conhecimento do vírus, ignore a eficiência das vacinas, não olhe nem pra cima nem pra baixo pra que a realidade não apareça.
Era incrível que o número de pessoas anti-vacina nesta cultura dizia respeito `as pessoas mais “modernas”, que supostamente sendo mais livres, eram, porém, muito mais escravas das teorias de conspiração do que dos achados da ciência médica. Como o desnaturar da natureza, a anulação da diferença entre verdade e mentira, notícias “fake” e reais, foi outro efeito da tecnologia, que através da internet joga mais e mais as pessoas num limbo.
Quando o dentista entrou, já estava tudo em andamento, eu nas nuvens e amando o filme de novo. O doutor, que aliás tinha uma voz macia e a mão mais leve de dentista que já senti, comentou que foi bacana aquele filme poder mostrar o governo americano da maneira como mostrou. Temos que dar crédito `a autocritica da cultura americana em muitos filmes e textos. Só que, como o humor no Brasil, ela parece que só faz extravasar uma revolta justa de maneira divertida ou literária, e tudo fica por isso mesmo.
“É”, respondi, “mas o que eu mais gosto nele é ver o apocalipse pois que nos obriga a pensar em Deus”.
Ouvindo isso, o cara disse pra ajudante, “Aumenta o gás, ela ainda está muito consciente.”
E assim eu fui pro espaço onde voava o cometa do filme. Aquele dentista sabe usar a tecnologia e botá-la no seu devido lugar!
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