Ivan e o Cristo - II
Eu tinha começado a desenhar livremente na escola para escapar do tédio das aulas, e criei figuras masculinas, alongadas, e meio destruídas, como se estivessem entregando sua essência e seu sangue para se fundir com o ar que as rodeava como numa espécie de comunhão brutal entre eles. Esses desenhos deram origem ao que eu agora estava submetendo a Ivan.
Enquanto ele se concentrava com intensidade no primeiro que exibiu no cavalete, seu olhar parecia atravessar a superfície deste, enquanto cada fração de segundo passando sem nenhuma indignação de sua parte me fazia sentir como se uma corrente interna tivesse sido afrouxada e eu pudesse respirar um pouco melhor. Quando virou o rosto para mim com estrelas brilhando em suas pupilas, me senti lançada além da gravidade.
A figura que aquele desenho mostrava, de um homem nu e alongado de perfil, sentado no chão com as pernas dobradas contra o peito, o rosto escondido nos joelhos e as mãos de dedos longos e cinzelados cruzados em volta das canelas de suas pernas fechava um círculo de auto absorção, separação e abandono. Foi difícil acreditar nas palavras de Ivan quando ele disse:
“Isto tem a intensidade de um Picasso!” E depois de olhar novamente para o desenho, ainda acrescentou, “A solidão, o alongamento de uma figura quase se desmanchando também me lembra Giacometti! A maneira como você distorceu a forma realista é totalmente expressionista! As mãos estão maravilhosas!”
Dirigindo-se a todo o grupo, falou, “Vocês conseguem ver que as mãos neste desenho alteram a forma realista, mas estão totalmente vivas? Isso deve mostrar a vocês que não se distorce a realidade só por distorcê-la!”
Depois de olhar para outros dois desenhos meus nos quais as figuras eram invadidas pela atmosfera que lhes rodeava, ele se virou para mim novamente com sua decisão final:
“Se você levar seu trabalho a sério e praticar, em dois anos eu faço você expor no Museu de Arte Moderna!”
Minha incapacidade de entender por que ele me achava tão boa não me impediu de sentir que havia ganhado uma validez que me era devida. Eu, que sofria constantemente, que tinha que contar com o álcool para conseguir abrir a boca, que sempre fui uma desajustada em todas as escolas que frequentei e tinha um pai que não acreditava que eu fosse normal, muito menos séria, vi total sentido em ser eleita ‘aquela’ artista por Ivan.
Eu alterava a forma de minhas figuras em função da minha paixão por linhas longas e que apontam — como nas catedrais góticas — para uma vitória da ascensão sobre a densidade, resultando da minha busca pelo espírito e da angústia dessa busca. Ivan sabia que eu precisava de mais prática, pois ele estava prevendo o que minhas composições poderiam ser quando eu amadurecesse o processo de fazê-las e esperava de mim um treino intensivo durante os dois anos em que ele achava que eu estaria pronta para expor no Museu, o último passo na carreira de um artista, mas que ele considerava adequado para ser o meu primeiro. Naqueles anos de sofrimento crônico, o sucesso que tive com Ivan me deslumbrou, e cega pela minha imaturidade, fiquei incapaz de ter uma ideia da prática, devoção, determinação e produtividade que ele esperava de mim.
Depois de julgar o trabalho de todos nos, ele costumava projetar slides da arte dos mestres para treinar nosso discernimento e nos conscientizar sobre a pesquisa que eles precisaram para chegar ao que faziam, a prática que isso exigia e a inspiração por trás de sua arte. Às vezes, mostrava a evolução de cada artista e enfatizava que eles eram atraídos por temas diferentes e tinham de descobrir sua própria maneira de treinar. Contou-nos que Francis Bacon praticou por muitos anos pintando feridas e carne antes de se tornar Francis Bacon.
Certa vez, nos disse que deveríamos aprender a diferenciar o que é arte do que não é e ser capazes de julgar nosso trabalho por nós mesmos, colocando diante de nós a tarefa de detetar o voo da alegria através da profundidade da seriedade; algo que ele fazia melhor do que ninguém. Me fez perceber que, sem regras nem fórmulas para entender as abstrações dos grandes artistas, se podia ver sua qualidade, ao contrário das formas lançadas arbitrariamente em uma tela por qualquer um. Ouvir as palavras de Ivan sobre as obras que ele nos mostrava me deu uma ideia de sua magia, seu “pulo da fé”, na linguagem de Kierkegaard. Sem nunca qualificar nada com termos religiosos, Ivan transmitia uma dimensão sagrada na arte.
O modo com que gostou de meus desenhos me fez pensar que tudo o que precisava fazer dali pra frente era continuar dando forma à minha dor mística até produzir quantidade suficiente para ser exibida. A antecipação de contar a meus pais sobre meu sucesso com Ivan e mostrar a eles que eu estava acima de tudo que havia falhado subiu-me à cabeça. Ao mesmo tempo, eu sabia bem que eles não pensavam duas vezes ao descartar as opiniões de outros. Papai me surpreendeu com sua alegria e alívio, "Sim, você será capaz de ter sucesso como artista!", ele disse, colocando um braço sobre meus ombros enquanto caminhava comigo pelas salas escuras da casa de meus avos, com quem jantávamos, segurando meus desenhos com admiração.
Nunca esqueci a sua mistura de alívio e satisfação ao andar de um lado para o outro comigo dizendo que eu era de fato uma artista e que ele "soube disso o tempo todo". Não era apenas Ivan e eu que eu não podia decepcionar agora, e a satisfação que senti com meu triunfo não apenas me deu certeza de que isso não aconteceria, mas acabou com a preocupação de papai com a minha ‘normalidade’.
Ele, no entanto, não falava de graça. Muitos anos depois, ao visitar em Tel Aviv "Diálogo no Escuro", tomei plena consciência de que a externalidade é intrusiva para mim. Eu estava num grupo de outras pessoas que tinham que ficar em fila com os olhos vendados, cada uma segurando uma bengala para ser conduzida por um cego que ia na frente com sua própria bengala nos guiando para passarmos por seis salas escuras de diferentes ambientes. O objetivo daquela experiência era nos mostrar o mundo dos cegos.
A princípio, tive medo de me sentir claustrofóbica, mas quando comecei a me mover na escuridão absoluta, a visão de um contorno vermelho luminescente tridimensional do rosto de Jesus apareceu para mim e não pude deixar de derramar lágrimas. Ao continuar, essa visão deu lugar a outra aparição de Cristo nas cores de uma presença de todo seu corpo, e senti naquele espaço escuro, fechado, e fora do mundo, a semente e a conclusão da minha alma.
Queria ficar lá para sempre, e quando tivemos, com os olhos ainda vendados, de entrar em um barco na água para chegar a um bar, sentar nas banquetas, pedir uma bebida e finalmente poder descansar no chão da sala seguinte antes de retornar para o lado de fora, eu estava exultante.
Minha filha estava ao meu lado, e sentir sua presença desconectada de sua imagem me fez ter consciência dela e da leveza de seu ser de uma forma que eu nunca poderia ter imaginado antes. Melhor que nunca, me dei conta da maciez de sua pele quando toquei seu braço, da textura sedosa de seus cabelos, e da delicadeza de seu perfume.
Poder senti-la sem ver sua imagem era como batizá-la no mundo invisível do coração, um mundo no qual eu também podia sentir algo imaterial mas muito intenso dela, como sua aura. Ao me recostar numa parede atrás de nós sem ter que olhar para nada, o bem-estar que senti me fez perceber que eu tinha que lutar contra uma resistência interna na vida quotidiana para registrar o mundo ao meu redor. Estava no meu elemento por não ter que fazer sentido da realidade espacial ou acompanhar o que acontecia fora de mim, porque eu realmente não gostava de "sair" de mim mesma, da sensação do meu próprio corpo, ou do fio de meus pensamentos.
Pensei que tal resistência `a externalidade poderia explicar a razão pela qual eu a neutralizava em torno das figuras que desenhava, transformando seu fundo em algum tipo de atmosfera agressiva invadindo seus corpos para virar parte delas. Cheguei a considerar que a intensidade que Ivan sentiu no trabalho que fiz pode ter resultado da minha dolorosa rejeição da realidade material que, quando percebida através de outros sentidos que não a visão espacial e objetiva, se torna parte de nossa própria de nós mesmos. Afinal, o olhar nos dá informação mais intelectual de todos os sentidos. Embora eu tivesse plena consciência de que não queria ser cega, não pude deixar de perceber que, em parte, eu o era.
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