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Foto do escritorLéo Viana

CAMINHANTE




Vagou por aí há tempos.


Foi menino, foi interno, foi vadio. Foi fugido, procurado, achado, perdido, esquecido. Louco? Foi. Consciente também. Não teve a sorte de encontrar uma Nise da Silveira. Sofreu mesmo nas mãos dos psicopatas de Barbacena. Os de branco, não os pacientes. E tome banho frio, choque elétrico, lobotomia. Esqueceu parte da história, mas não tudo. Vagou sem destino. Ou com. Não procurou quem o abandonou. Não achou razoável. Não era mesmo. Quem abandona não quer mais saber. Por que ele deveria querer?


Não foi bandido. Mas roubou. Furtou, melhor dizendo, pra comer, pra vestir. Invadiu pra dormir. Ficou invisível. Notou sem ser notado. Foi quase sempre pela sombra, mas muitas vezes foi pelo sol quente mesmo. Ou pela chuva, quando não havia outro jeito. Nem sempre havia marquise. Nem sempre andava por cidades, mas sempre andava, nem sempre parava. Não repetia lugar. Trauma. Só repetiu quando foi obrigado. Solitária, quartinho, castigo.


A vida foi pelo caminho. Foi passando junto pelos lugares e ficando por eles. Sem contato, sem gente que interviesse. Solidão pensada pra se defender do outro. O outro mata, agride, assusta, maltrata. Antes só que mal acompanhado e qualquer companhia é má. Não precisava de ninguém. A saúde física nunca faltou. A mental dizem que nunca houve... mas o que é isso? É ser “normal” como os maus? Melhor assim, insano.


Sem paixões, sem time, par, parentes. Sem bicho de estimação. Minas, Rio, São Paulo. Sempre caminhando. Pelos caminhos indiretos. Serras, campos, pastos, lavouras. Pouca gente, muito bicho. Bicho de comer. Comeu alguns. Mais pequenos crimes. Escondido, sempre. Bicho pequeno e que não fizesse barulho. Ou um frango pego distraído. Galinha é bicho dedo duro, grita, avisa, não serve.. Porco também. Comeu até cobra. Sabia se tinha veneno ou não. Aprendeu. E planta.


Aí sim, foi o que mais comeu. De horta do caminho, com o cuidado de não estragar nada e pegar o mínimo; de pomar bonito, sem deixar rastro e sem acumular. Cana de lavoura, milho verde.

Cidadezinhas que atravessava rápido, pra não criar vínculo, evitar contatos, não conhecer gente. Falava tão pouco que quase perdeu o jeito. Mas vez ou outra pediu. E só pediu pra saber se ainda sabia. Pediu sem precisar, pra testar os outros. Seriam melhores os que ia vendo pelo caminho? Muitos não ouviam quando pedia. Estaria mesmo invisível? Não. A Humanidade é que não melhorava. Sentia que nas cidades menores, nas localidades mais pobrezinhas, as pessoas procuravam o contato. E aí era ele quem as evitava. Não sem dó. Pareciam bons. Mas não valiam o risco. Ofereciam comida, que ele rejeitava. Ofereciam roupa e chegou a aceitar alguma vez. Dinheiro nunca. Queria viver sem mesmo. Ademais, era deles que furtava comida. Talvez não gostassem de saber quem o fez. Talvez se sentissem enganados em sua boa fé.


Foi assim que existiu, resistiu, persistiu. De um lado para o outro, mas sempre em frente, sem retornos, sem retrocessos. Foi assim que passou pelo mundo. Ou que o mundo passou por ele. Com poucas testemunhas. Ou nenhuma. Ninguém que prestasse verdadeira atenção ao que ele fez ou deixou de fazer. Ninguém que dissesse o que seria melhor fazer. Opa. Isso houve sim. Quem o chamasse de louco e o obrigasse a medicamentos e procedimentos agressivos e degradantes. Sempre imposições, quase nunca favores. Mas dessa preocupação fazia questão de não lembrar. O que ganharia com isso? Mais ódio? Já desprezava a humanidade mesmo, no conjunto. Apesar dos bons que percebeu pelo caminho, coitados. Talvez sofressem mais que ele. Não fizeram lobotomia. Ou não. Inocentes, coitados. Caipiras de histórias de época.

Viu o fim chegar. Devagar, como sempre, mas viu. Sentiu as pernas cansarem, milhares de quilômetros depois. Viu passar carro de boi, caminhão, trem, ônibus, carroça. Respondeu ou não a acenos, xingamentos, piadas. Foi romeiro, andarilho, atleta, desocupado, passageiro esperando condução. Foi tudo na cabeça de quem o viu beirando estrada.


Foi moço, foi velho, foi limpo, foi sujo. Mais limpo que sujo. Foi gente, foi bicho. Foi o que deu pra ser, o que o tempo permitiu, a parte que lhe coube.


E viu, aos poucos, o fim chegando. E foi doído ir deixando a vida, os caminhos, as terras que viu e as que ainda veria se continuasse andando. Foi parando aos poucos, foi deixando de ter o ímpeto da descoberta do novo, que não perdeu mesmo quando cansou de gente. E olha que de gente cansou cedo. Andava pelo novo, pra se surpreender. Nunca com as pessoas, mas com os lugares, as coisas, os bichos, as paisagens.


Escolheu onde morrer. Deitou no mato, longe. Deu verme. Urubu comeu. Ninguém contou a história. Ninguém viveu a história com ele. Nem se sabe se existiu mesmo. Quem viu foi pouco e não lembra. Viveu sem testemunhas. Um dia encontrarão a ossada. E lhe darão uma história. Peritos, curiosos, arqueólogos. Qualquer história. Menos a verdadeira, a que ninguém escreveu, aquela que levou consigo pelos caminhos por onde foi deixando a vida. Aquela que pode até nem ser essa aqui.


Sem testemunhas.


Rio de Janeiro, maio de 2023.


 

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