ARTIFICIALIDADES
Não sei, não, mas tenho extremo receio de certas modernidades tecnológicas, ainda em pleno início de desenvolvimento, e que têm muito potencial para crescer. Por mera curiosidade, entrei num desses aplicativos de inteligência artificial, mesmo tendo plena consciência de que um computador jamais terá a capacidade de, por exemplo, compor um verso como Junqueira: "E então me pergunto, a sós:/por que desdenhar o outrora/se nele é que ecoa a voz/do que, no futuro, aflora?...”.
Uma máquina pode até produzir um texto literário, baseada em teorias acumuladas do que seja a definição de literatura, mas sem a complexidade que nos distingue. Não sou um homem de muitas convicções, mas essa, talvez, seja uma das poucas e verdadeiras, que trago em mim. E o poeta garante o seu lugar insubstituível sobre o tempo e a velocidade dos softwares, futura e totalmente autônomos.
Temo muito, isso sim, a horda de desempregados que nascerá com os avanços das inteligências artificiais. Que empresário precisará de um ser humano para fazer uma planilha de custos? Ou uma análise financeira comparativa? Ou até mesmo um projeto de uma casa tal, no lugar tal, mas, nesse caso, conversando com o meu amigo Fernando Júnior, arquiteto de mão cheia, e poeta, também, feito a minha opinião, acha que a inteligência artificial nunca terá a nossa complexidade conceitual, porque, segundo ele, projetar não é somente construir, e que essa discussão já existe no meio deles e, penso, deve existir em vários outros nichos profissionais.
A pergunta de um milhão de dólares é essa, entre todos nós: somos cem por cento substituíveis por uma máquina, profissionalmente?
Vejam o que o grande e talentoso historiador Pedro Doria escreveu há poucos dias num grande jornal brasileiro: “Não é trivial. Afinal de contas, os algoritmos são treinados com dados que nós, humanos, produzimos. Se um bairro é mais pobre e tem mais negros, talvez tenha também um índice maior de calotes. Mas não é a cor da pele que determina isso, é a pobreza. O algoritmo, porém, pode não perceber os vieses que nós, humanos, impomos a toda hora”. Briga de cachorro grande, não é não?
Mas ninguém se preocupava mais com isso do que o meu falecido amigo Everaldo. Todas as vezes que nos encontrávamos, antes dessa moda de inteligência artificial, o papo sempre corria para o pânico que ele tinha dessas coisas. Assombrado, era comum ouvir dele, depois de uns tragos:
̶ Eu fico com medo, serinho, do meu celular... Sei lá, cara, aquelas câmeras e aquele microfone não me enganam... Acho que eles veem tudo, ouvem tudo... Acho que a TV tem câmera escondida... Eu li esses dias que tem máquina que pensa sozinha, compadre! Já imaginou isso? Uma desgraça de metal que pensa ou sei lá o quê?
E emendava:
̶ Irmãozinho, ainda bem que eu vou morrer antes de a água ser mais cara do que a gasolina e dessas coisas aí ̶ eu, vade-retro Velho ̶ que vão tomar conta da gente... Eu, hein?
E ele se foi mesmo, de repente, numa noite fria. A escuridão máxima, o auge do negrume da madrugada, exatamente o instante que antecede a aurora. Everaldo foi embora antes de a cortina do dia se abrir naquele dia nublado de segunda-feira.
Nélson Rodrigues disse que o Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada. Everaldo partiu dois minutos antes do tudo.
Ô saudade...
Arte, Música e Cultura
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