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Amor e Morte


Eleonora Duvivier

Eu adorava minha avó macia. Sempre que podia, corria pra casa dela e ia para o quarto que ela repartia com vovô e onde ficava a maior parte do dia, enquanto ele trabalhava no seu escritório. A disponibilidade de vovó era avida, e sua incondicional boas-vindas era tudo pra mim naquela época. O amor sacrificante que ela tinha por aqueles a quem se referia como “os meus”, aqueles que diretamente tinham saído do seu corpo, como filhos e netos, e por vovô, que era a outra parte na origem de sua sagrada ninhada, misturando instinto e clarividência, permitia que a boa senhora percebesse que ele entendia a prioridade de seus filhos no coração dela e tinha orgulho por ter algum lugar naquele amor canibalista que relegava todos que eram alheios `a sua fome `a condição de “estranhos”, que nos lábios dela soava como uma maldição. Entre a realidade da carne familiar e a terra de estranhos perto do inferno, havia um limbo destinado às suas noras, que ela tratava com educação mas distancia.


Sentava-me no seu colo durante horas, ignorando a televisão ali em frente gritando notícias que a interessavam, ate a hora do meu banho na sua banheira verde. Vovó a enchia, jogava um pato de borracha na agua quente e me deixava brincar um pouco antes que voltasse para me ensaboar. “Mas se você ficar tonta grite por mim, vou deixar a porta entreaberta”, ela dizia antes de sair. Vovó adorava cuidar de mim a despeito do esforço que fazia, visível nos seus suspiros quando se inclinava sobre a banheira e se levantava para alcançar a toalha com que me secar. Mas aquele desgaste era uma sombra passageira na luz de um amor que vinha de seu coração através de suas mãos para minha pele ensaboada e para a minha alma.


De volta ao seu colo, eu continuava ignorando os outros programas na televisão, pois de nada precisava que não fosse o amparo de seu seio morno. Seus peitos lhe batiam pela cintura, parecendo-me os maiores no mundo, e eu ficava extasiada com as medalhas de santos aninhadas entre eles como se toda a hierarquia do paraíso se escondesse no encontro daquelas imagens sagradas e douradas com aquele seio amado. Com seu peso e sua respiração pesada, vovó andava meio que se arrastando, seus olhos verdes caídos refletindo a autoridade do sofrimento atras do par de óculos brega que usava, cuja armação, formando pontas ascendentes `as beiras de seu rosto, estava em contradição direta com sua expressão melancólica.


Além de vovó só vestir roupas muito baratas e se orgulhar de só usar sabão de coco para tomar banho, sua constante miséria penitencial a fazia economizar até a agua usada do meu banho para jogar na privada sem ter que dar descarga. Carregava aquela água, quando preciso, da banheira pra essa privada dentro de um balde de plástico tantas vezes quanto necessárias, enquanto puxava respirações cada vez mais pesadas. Mas ela era generosa ao me comprar bonecas, sabendo que papai e mamãe não tinham suficiente para pagar tal luxo.


Às vezes, ela parecia mais triste que de costume com um nó invisível entre suas sobrancelhas, como um puxão visceral que lhe dava o aspecto de um buraco sem fundo, e me pedia para que quando morresse eu não esquecesse de lhe rezar um Ave Maria. Seu medo perfurava sua expressão como respondendo ao impulso cego do bicho papão ou a vertigem diante do abismo. “Ta bem” eu dizia depressa, para empurrar aquele pensamento pra fora da minha cabeça o mais rápido possível.


O poder da afeição de vovó transformar a pequena e tímida pessoa que eu era no ser mais significantemente presente vinha com uma fobia de morte que se refletia pra mim nos cantos escuros do seu quarto e nas formas retorcidas da mobília que continha. A generosidade do amor entretanto não discrimina, e minha aceitação incondicional de tudo ligado a vovó dissipava as formas predatórias de animais desconhecidos que as bordas daqueles moveis de madeira escura evocavam ao alternar vazios sinistros e curvas enroscadas, pontas e voltas obscuras, disfarçava a pintura gigante e assustadora de uma das paredes, as cores sombrias do tapete, o brilho indigesto e cinzento das cortinas volumosas, transformando tudo num pano de fundo neutro pra eu poder estar na companhia de vovó.


Só muitos anos mais tarde, depois de passado o amor que eu lhe tinha aquém das palavras, vim a perceber o quão macabro era o aposento de vovó. Vovô já tinha morrido quando ela transformou o banheiro que era dele numa mistura de esconderijo usurário e refúgio hipocondríaco, guardando comidas especiais, poções venenosas que fazia contra ratos e suas próprias injeções dentro de uma geladeira que botou ali no meio. Mamãe ficava horrorizada com a imprudente facilidade com que ela espetava uma de suas próprias pernas com a variedade de injeções de agulhas enormes, contendo seus farmacêuticos preferidos, sempre que imaginava precisar de algum.


Mas de pessoa amante que era, vovó se transformou em uma fonte de culpa e angústia quando eu ingressei na escola em que ela própria convenceu mamãe a me matricular, antes desta partir pra Europa com papai. Foi então que a religiosa senhora começou a anunciar não só a iminência do seu fim (que só aconteceu vinte anos mais tarde) como o seu plano de voltar do outro mundo para buscar seus filhos no caso de o lado de lá ser melhor do que o daqui.


Seu estratagema macabro aumentava o medo crônico que passou a me afligir naquela época e era derrotista em qualquer hipótese: No caso de ela voltar, meu pai seria sequestrado, e no caso de não voltar, o outro mundo seria algo a temer no fim da linha pra sempre. Ela anunciava aquele plano num tom de voz que tinha a fúria dolorida de um animal encurralado, e uma convicção tirada da raiva, frustração e terror, corroborando o medo que inspirava ao se afirmar como único júri, porta voz e manipuladora do outro mundo, moldando-o numa realidade indiferenciada cuja qualidade só dependia do seu próprio destino.


 

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