Amor e Alma
Todos nós já passamos pela experiencia proustiana de não conseguir nos identificar com aquele nosso “eu” do passado que se apaixonou por essa ou aquela pessoa. Em geral, ao olhar nossas paixões de longe, nos perguntamos como pudemos ficar tão loucos por determinado individuo.
Minha mãe dizia que a paixão resulta da nossa projeção de um holofote num determinado ser, que faz tudo `a volta dele ficar no escuro. Uma vez passada, o holofote é retirado e vemos aquela pessoa tal qual é.
Proust diz que projetamos divindades no ser amado, e o amor é puramente subjetivo. Então, quando avaliamos aquele tempo em que sentimos essas divindades em alguém e vemos que esse alguém, quando olhamos em retrospecto, não lhes corresponde, não só o estranhamos como também não nos reconhecemos no que sentimos por ele. Isso acontece tantas vezes que depois dos cinquenta, ao relembrar os caras por quem me apaixonei quando jovem, achei-os tão absurdos que passei até mesmo a acreditar na teoria biológica de papai, que eu na juventude achava absurda e profana. Para ele, atração por alguém não é mais do que um chamado hormonal da espécie para que possamos servi-la, quer dizer, para procriarmos. Agora reconheço que sob o efeito dos hormônios, enfeitei muita gente do sexo oposto. Mas achava papai louco ou cínico por ver o amor ou a paixão dessa forma. Para uma jovem, o encontro romântico é (ou era) o que existe de mais sublime. Só seria um efeito biológico se o corpo físico fosse tudo que existisse, mas essa hipótese, ao invés de ser algo que se pode aceitar sem pensar duas vezes, reverte ao tema de uma discussão antiga, insistente e fundamental da filosofia, sob formas diferentes que vão se sucedendo.
Não acredito que só exista matéria, nem que projetamos um holofote no ser que amamos. Quanto a ver divindades nele quando o amamos, às vezes fico em cima do muro: Por um lado, concordo com Proust que o ser amado tem uma dimensão divina pra nós. Gaguejamos diante dele, ficamos mais inseguros, e escravizados a uma terrível necessidade de impressioná-lo que só nos torna ridículos. Mas fico em cima do muro porque por outro lado, se consideramos que Deus está em cada um de nós, fico achando que talvez só mesmo o amor nos permita verde fato a pessoa que amamos, ou seja, o divino que mora nela. Uma vez passado deixando de amar, voltamos à trivialidade banal em que nada e ninguém nos aparece tão elevado.
Digo tudo isso porque recentemente tive a experiencia oposta e que não achava ser possível. Na casa dos sessenta, me identifiquei por inteiro com a menina que eu era aos onze, ao me reconhecer no amor intenso que ela sentiu por alguém. Esse alguém, Peter O’toole, era um artista de cinema, mas e daí? Já vi mil artistas de cinema que achei o máximo na juventude e mais tarde não entendi por que e fiquei chocada com a pobreza do meu gosto de outrora. Ficava então a pergunta: Quem era eu?
Voltando a O’toole, depois que o descobri, não consegui durante alguns anos passar um dia sem sofrer por ele. Como naquela época se considerava arriscado uma menina de onze anos ir ao cinema sozinha, consegui arrastar mil membros da família para me levar diante da grande tela e mais uma vez poder ver Becket, o filme em que O’toole contracena com Richard Burton. Pois então não havia VCR, DVD, ou grandes ofertas na televisão. Minha obsessão por O’toole era implacável. Certo dia na praia, com doze anos de idade, deitei na areia sob as ondinhas, abri os olhos, e vendo o verde liquido sobre mim e o azul do céu mais acima, me senti desamparada, imaginando que de nada adiantava reconhecer tanta beleza se sabia que nunca chegaria perto de Peter O’toole.
Ele, longe de representar em Becket um bonitão masculino e musculoso que mais facilmente encantaria moças jovens, tinha ataques histéricos como só ele sabia ter, e como Henrique II da Inglaterra, era apaixonado por Thomas Becket, que foi representado por Richard Burton. No papel do rei medieval inglês, O’toole aparece bastante magro e pálido, longe daquele ser corado e apolíneo que incarnou como Lawrence da Arabia. Ao adorá-lo como Henrique II, nunca me perguntei o que via nele tão usurpador.
Lembrando-me dos esparsos artigos que na época consegui encontrar sobre O’toole em algumas revistas, vejo que Henrique II foi o personagem mais de acordo com o que ele era na realidade (e com isso não estou insinuando que era ou deixava de ser apaixonado pelo mesmo sexo; não vem ao caso). Numa declaração sua que nunca esqueci, ele, por viver se embriagando, justifica-se dizendo que enquanto outros vivem para morrer ao deixar de fazer muitas coisas por medo de estragar sua saúde, ele, que não tinha esse medo, morria para viver. Achei isso o máximo, e durante a minha adolescência autodestrutiva, serviu-me de lema. Expressa também a essência do personagem que O’toole representou como Henrique II, um cara que vive de se autoconsumir.
Desde que ainda com doze anos, eu esgotara todos os familiares que pudessem se deslocar comigo para o cinema, tive a ousadia de até pedir a uma prima bem mais velha, afastada, e mãe de família, que me levasse para ver Becket de novo. Ela topou. Ainda lembro como foi grande pra mim a promessa de felicidade do comecinho do filme me lembrar que eu ainda tinha duas horas para assisti-lo pela frente. Por causa disso, eu curtia até o que vinha antes daquele comecinho, como a música, os créditos e nomes dos autores se sucedendo na tela.
Lembro-me de uma senhora amiga de mamãe, que sei lá como, havia tomado chá com Peter O’toole em Londres. Eu, que na avidez da minha curiosidade, tinha questões infinitas que nem bem conseguia definir para lhe perguntar sobre o ator, quando ela veio nos visitar me apareceu como puro privilégio divino por ter estado na presença de O’toole e não consegui lhe dizer uma só palavra. Mas mamãe tocou no assunto, e sua amiga falou que ele tinha os olhos mais lindos que já vira. Só disse isso, mas essa breve informação foi para mim a revelação de um mistério tão inespecífico quanto eterno. Passei muito tempo imaginando aqueles olhos líquidos que parecem se derramar no rosto de O’toole, sobre uma xícara de chá, diante da amiga “escolhida” de mamãe. Em geral, nunca tive preferência por olhos claros a olhos escuros. Mas aqueles eram os olhos dele!
Até dezessete anos, eu me abalava para qualquer canto da cidade para rever Becket, e até mesmo no estrangeiro, se descobrisse algum cinema em que porventura passasse esse filme, me despencava de onde estivesse para assisti-lo. Quando em Londres pela primeira vez, eu nem falava inglês, mas consegui ver Becket de novo sem qualquer subtítulo. Mas não importava. Pois o sobrenatural, o que tira a gente do sério, a piração total ou sei lá o que, estava ali naquela tela enorme acenando pra mim, ou pra minha alma. Mesmo assim, cheguei a atingir o ponto em que ao reassistir Becket quase que por condicionamento, desconheci o que tinha sentido por O’toole, e estranhei quem eu havia sido. Passei por mil fases em relação ao filme e a ele. Houve uma época em que até cheguei a achar Richard Burton como Becket o mais bacana entre os dois. Depois disso, passaram-se anos em que simplesmente parei de ver o filme.
Mas um dia, durante o tempo em que eu e meu irmão Edgar cursávamos nossas respectivas faculdades em Boston, descobri que Peter O’toole estava representando Macbeth num teatro em Londres. Eu já tinha 26 anos, mas diante da oportunidade de ver aquela “divindade” ao vivo, o halo sagrado que eu tinha visto nele voltou. Na época, eu namorava um francês super neurótico que repartia um apartamento com Edgar e eu aqui nos Estados Unidos. Eu vivia tentando romper com ele, mas diante das suas súplicas, acabava não conseguindo. Quando contei a Edgar que Peter O’toole atuava numa peça em Londres, meu irmão, a pessoa mais anticonvencional que existe, Deus seja louvado, me animou a ir assisti-la. Não só isso, como me convenceu a entregar uma carta que ele mesmo escreveria por mim ao ator. Eu seguia cegamente os conselhos românticos de Edgar, e na carta, eu me oferecia a O’toole para trabalhar de graça limpando e arrumando a sua casa.
“Melhor trabalhar de graça pra um homem que você adora do que namorar um babaca!” foi a conclusão irreverente de Edgar. “E não esquece de botar o telefone de onde vai ficar e uma foto sua no envelope para que ele se lembre de você...” concluiu.
Para que não haja mal-entendido, Edgar e eu não somos exatamente fora da realidade, mas acreditamos no impossível.
Minha melhor amiga estava então morando num apartamento em Londres, onde estudava na época. Me recebeu em sua casa com o maior prazer, mesmo conhecendo o motivo desvairado que me levava a Londres e a minha missão de entregar a carta que Edgar tinha escrito. Como ele recomendou, adicionei a essa carta o telefone dessa amiga e uma pequena foto tipo identidade, que na época se tirava dentro de um pequeno recinto em que se entrava e inseria moedas na fenda em frente ao banquinho onde se devia sentar. Dali a pouco o flash batia e a foto era expelida de uma reentrância abaixo da fenda.
Nem bem ouvi o que se falou na peça pois minha atenção estava totalmente focada na figura e movimentos de O’toole. Para quem não sabe, ele era altíssimo, e me lembro como ofuscava vestido em veludo verde esmeralda. Eu sabia que ele não tivera boas críticas naquela peça, mas pra mim ele também ofuscava a peça e o teatro inteiro. Fui esperá-lo no final, e consegui descobrir a porta por onde sairiam os atores. Ali fora na calçada, Londres apareceu coberta por aquele fog charmoso que borra as luzes da cidade e aumenta o seu tamanho, transformando-as em estrelas difusas sobre o vapor cinzento que tudo amacia, disfarça, e estimula a imaginação. Um por um, reconheci cada ator que saia, até que por um bom tempo ninguém mais apareceu. Era inverno, fazia frio e as ruas e calçadas estavam desertas. Imaginei que O’toole devia ter saído por algum lugar escondido, mas ainda assim resolvi esperar mais algum tempo no vazio e no frio. Quando comecei a pensar que era bom demais pra ser verdade poder vê-lo em pessoa, ele surge porta afora!
Encasacado e esguio, portava um chapéu preto, e em volta do pescoço uma echarpe cinzenta e grossa, de modo que quando corri ao seu encontro, os seus olhos apareceram maiores, mais claros e transbordantes do que nunca, como duas lanternas de água azul entre a escuridão do chapéu e da echarpe. Olhos rebeldes, que como ele, não se submetiam a limites.
Diante do que me parecia uma aparição de outro mundo, ainda consegui dizer, entregando-lhe a carta: “I have waited all my life to see you!” (Esperei toda a minha vida pra te ver!)
Ele apertou minha mão, reteve a carta, e disse, na sua voz grave e única: “Thank you.”
Naquele mesmo momento, o flash fotográfico de um jornalista que estava escondido em algum canto iluminou a cena com sua luz metálica, e o ator se afastou a passos largos.
Claro que ele não telefonou me procurando, mas o encanto de tê-lo visto e poder achá-lo mais intenso e sobrenatural do que na tela do cinema permaneceu comigo.
Décadas se passaram antes que eu novamente visse Becket, dessa vez em casa, na televisão, e com minha filha que tinha então dez anos. Apreciei o filme em si, seus diálogos e o tema complexo do conflito entre viver para Deus e viver para o mundo. Mas quanto a Peter O’toole, assim como Richard Burton, ele então só me apareceu como parte fundamental do filme. Na época, eu morava com marido e filhos.
Dali a mais de dez anos, meu casamento se esgotou e vim me encontrar morando no sul da California, por obra, graça e ajuda desses filhos maravilhosos. Sabiam que eu precisava de um lugar sossegado e distante da neura e do constante controle daquele marido pra poder escrever e ser quem sou em paz. Nunca tinha pensado em morar na California, esse reino das mega dimensões, pistas infinitas de velocidade, natureza estonteante, e milhares de automóveis. Isso aconteceu ainda durante a pandemia, que enlouqueceu muitos, matou outros tantos, esgotou os que ficaram, e deu cabo de muitos casamentos, o que foi bom no meu caso.
Como não dirijo nessa enormidade, levo uma vida bastante monástica. Mas diante do que virou o mundo, considero um luxo viver na minha bolha e poder escrever entre seis e doze horas por dia, ver Youtube sobre filosofia e arte, e ler. De vez em quando, me permito alguma diversão mais imediata e assisto alguma serie ou filme neste laptop. Assim, ousei rever Becket há algumas semanas. E ainda continuo a revê-lo. Na minha maturidade avançada, observo tudo em Peter O’toole, e independentemente de conseguir botar em palavras o efeito que ele tem sobre mim, me regozijo ao sentir por ele o que senti com onze anos, reencontrando-me com a criança que fui e fechando o círculo. Por causa disso me pergunto o que é que nele tem tanta força sobre mim.
Notei que nas suas autoirônicas gargalhadas, ele é catártico. Pois também tenho essa tendencia de rir do que é fora de controle e histérico, não por nervosismo, mas porque os extremos se tocam e em certos casos aquilo que não deve ser engraçado se torna hilário. Notei que O’toole, nas suas emoções desenfreadas, vive sem nenhuma contradição a interdependência do ódio e do amor. Passa de um ao outro com uma intensidade inocente e única. Percebi que ele é a vida tempestuosa e pura da paixão. Todos os nervos de seu corpo e a própria sensibilidade que, como aquele rei descendente dos vikings, escondia sob o direito de mandar, fala mais alto que a autoridade furiosa que muitas vezes demonstra. Admirei sua sinceridade agressiva contra o convencionalismo e mediocridade de sua esposa e de sua própria mãe.
E perto do fim, ele, depois de ser chicoteado como penitência por ter sido a causa indireta da morte de Becket, conversa com este sobre o seu tumulo, perguntando-lhe, com o carinho e delicadeza de uma mãe, se com aquela penitencia havia conseguido lavar a honra de Deus assim como Becket queria. Nesta cena, os músculos do rosto de O’toole manifestam o mesmo dinamismo líquido de seus olhos e movimentam-se quase que simultaneamente para o chorar e o sorrir, e ele vira o perdão da delinquência, a inocência do crime, e a impunidade do coração. Expressando o ponto em que extremos opostos guerreiam e se amam ao mesmo tempo, O’toole é pura absolvição.
Boto tudo isso em palavras, mas existe algo inefável no que esse ator tão único causou em mim durante tanto tempo, e que ao invés de se ter tornado obsoleto, continua. Através dos anos tudo em nós muda, e somente a nossa alma pode ser comum aos nossos doze anos e aos sessenta e tantos. Identificar a nossa infância com a nossa velhice é encontrar essa alma. Fechar círculos é unir-se a ela, virar começo e fim de nós mesmos.
Música, Arte, Cultura.
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