top of page

TURBULÊNCIAS



No avião que cruzava apressado o Atlântico, no sentido contrário ao dos navios negreiros, catacumbas flutuantes que levavam vivos e mortos aos milhões para o novo mundo, refletia sobre as vicissitudes e idiossincrasias de uma vida quase comum.


Nem era de seu feitio refletir muito. A motivação talvez estivesse ligada ao medo de voar, especialmente quando turbulências fazem o avião parecer um touro de rodeio. Jamais subira num animal daqueles, mas tinha certeza que deveria ser assim.


Sabia que seus antepassados haviam feito a viagem, desde a costa ocidental da África até um porto incerto do Brasil, muito possivelmente o Rio de Janeiro, mas mesmo isso era uma possibilidade, sem garantia alguma. Poderiam ter sido desembarcados, sem qualquer hospitalidade ou tratamento minimamente humano, num cais em Salvador, Recife ou São Luiz. Não conhecia bem a história de seus ancestrais no Brasil. As últimas quatro gerações, sobre as quais sabia bem pouco também, eram do Rio mesmo. Mas, sendo todas do século XX, não havia meios de dizer que não fossem originários de outra parte.


Música boa na playlist do Youtube, escute! !


As zonas de turbulência eram especialmente favoráveis à reflexão. Porque “turbulências não derrubam aviões“, conforme já ouvira de gente mais experiente. Nunca soube se era verdade, mas vinha fazendo sentido. O desconforto, no entanto, era quase insuportável. Só se amenizava internamente quando imaginava a viagem dos escravizados, retirados à força dos seus e embarcados amarrados e deitados em barcos que cruzavam o mar bravio, com chances muito maiores de não completarem a jornada, transformados em ração de tubarão no caminho ou indo direto para os cemitérios de pretos novos, como o descoberto há não muito na zona portuária do Rio de Janeiro.


Nas turbulências se evidenciava a pequenez de seus problemas, diante daqueles que efetivamente importavam. Viajava agora a trabalho, premido pela necessidade de atender às demandas da empresa de segurança digital. Inicialmente fora contratado para a gestão de segurança com a promessa de não precisar sair de casa para exercer suas funções. A própria empresa disponibilizara internet de última geração e computadores com capacidade e velocidade não disponíveis para a maioria dos mortais usuários.


A grande capacidade operacional, entretanto, fez do Osmar a estrela da companhia. Após a descoberta, por ele, de ameaças de ataques que inviabilizariam a operação internacional de grandes bancos de dados fundamentais para a economia global, ele foi rapidamente alçado a coordenador mundial de segurança e obrigado a viajar praticamente o mundo todo duas ou três vezes por ano.


Era a primeira ida à África, porém. E isso engendrava ainda mais reflexões. Na sede da companhia, em NY, era seguidamente lembrado dos slogans de igualdade e inserção digital que norteavam a companhia, sempre interessada na maior difusão de usuários de redes, o que aumentava a complexidade e o consequente valor dos serviços que prestava.


O mapa de clientes, que cobria a totalidade da Europa e da América do Norte e coloria de vermelho (a cor da companhia) o leste da Ásia e a Oceania, era bem menos adensado nas Américas do Sul e Central. Só recentemente acendeu-se uma luz, e bem fraca, sobre a África do Sul. Viajava para instalar a segunda, num ponto de Dakar, no Senegal. Negro, Osmar custou a se sentir confortável, mas não entendia exatamente por quê. Originário de família humilde da periferia, não chegou a ser aluno brilhante, mas via na educação a solução de seus dilemas pessoais, de suas aspirações, de um mundo que não se entregaria a ele sem empenho redobrado. Mas também não se sentia discriminado. Era mais um, em sua cosmologia relativamente limitada, em busca de um espaço num mundo competitivo e desigual.


O céu sobre o Atlântico, que ele já tinha cruzado muitas vezes a caminho da Europa, estava especialmente hostil naquele dia. E provocava turbulências violentas como nunca dantes, levando a reflexões igualmente ainda não aprofundadas. Qual a sua própria importância naquele contexto corporativo? Em que momento foi alçado à condição de “importante” naquele jogo em que bancos e grandes companhias disputam a riqueza do mundo auxiliados por consultorias internacionais que detém segredos mortais a respeito de seus produtos e serviços ou sobre a própria solvência financeira daqueles grandes grupos?


A música maravilhosa de Mário Lago, nesta playlist do Spotify.


Foi interrompido em seus devaneios pela comissária de bordo, que trouxe uma taça de champanhe imediatamente após o fim da turbulência, cortesia com que a companhia aérea buscava agradar aos poucos que ocupavam a classe executiva do avião. Sim. Voava, a serviço do grande capital, na classe executiva quando não havia primeira classe, que vinha sendo aos poucos reduzida ou eliminada em virtude dos altos custos.


Uma sensação de conquista, que por vezes se confundia com vingança, lhe dominava a razão, ainda que com forte componente emocional. Ele não era uma cara conhecida, um governante poderoso, uma celebridade do showbiz ou coisa do gênero. Mas o poder que detinha poderia criar problemas em escala planetária, assim como normalmente solucionava problemas na mesma escala. Prestava serviços, sempre individualmente e a distância, a governos grandes e pequenos, dos quais também detinha segredos importantes.


Mais uma grande turbulência. O caminho contrário ao dos escravizados, no conforto da classe executiva de um avião moderno, cercado por outros bem situados socialmente. Nenhum negro como ele, ninguém fazendo reflexões daquela mesma natureza, mesmo provavelmente tendo sangue africano correndo em suas veias também. Segredos corporativos e de estados nacionais em seu poder. Poucas horas para o pouso. O ingresso sem visto, mas monitorado por satélite. Fácil abandonar o laptop em qualquer parte, trocar de telefone.


Ao sair do aeroporto, imediatamente fez contato com agentes do governo que o protegeriam, não foi atender ao cliente privado. Não deixava família ou muitos amigos para trás. Fora sempre solitário e foi assim que se tornou um profissional cobiçado. Tinha como acessar contas secretas no exterior e garantir o sustento.


Nunca mais foi visto. Mas grupos específicos de defesa dos direitos dos negros e moradores de favelas cariocas eventualmente recebem recursos de um doador anônimo.

E ao que parece, hoje em dia ele reflete sem a necessidade de turbulências.


Castelldefels, Catalunha, janeiro de 2023.


 

Música e Cultura




 


Plataforma musical reune artistas, compositores e usuários comerciais de música, como TV, publicidade, rádios e internet para pesquisar, escutar e licenciar obras certificadas para trilhas sonoras diversas. Qualquer um pode abrir um perfil apenas com nome e e-mail.



Veja como funciona.


Trilhas sonoras que podem ser licenciadas a partir de $ 9 reais, para videos em redes sociais!

Abra agora um perfil na Cedro Rosa Digital.



 

Escuta!



+ Confira também

destaques

Essa Semana

bottom of page