Triste, mas Belo
Para mim, o principal poder da beleza é transmitir uma justificação transcendente, como se o objeto belo, seja um rosto, seja um espetáculo natural, ou uma obra de arte, fosse o cumprimento de um plano ou intenção que o precede e que o faz ganhar forma. Nada é gratuito, demais, ou por acaso no belo, e por isso ele transmite alívio existencial a quem o aprecia. Ao responder ao que lhe preexiste, responde ao que nem sabíamos que perguntávamos. A beleza é a dimensão visível da fé. Mesmo quando ela é triste. Tudo isso para chegar a certas memorias que tive, passando de visita pelo Rio de Janeiro.
Conversando com uma amiga de adolescência sobre nossas respetivas famílias, ela lembrou-se de que quando eu falava de papai naquela época, ficava com o rosto cheio de estrelas. Isso me fez lembrar que com 14 anos, o apelidei de Lindão, e em troca ele passou a me chamar de Lindinha até o fim de sua vida. Na época, eu estudava no liceu francês, onde, um professor novo recém-chegado da França, encantava os estudantes com a sua beleza e carisma. As meninas o perseguiam pelas ruas, sem saber onde ia dar aquilo, mas o cara era imantado. Eu era a mais fiel `a orbita em torno dele, mesmo sabendo que nunca teria coragem de lhe dizer uma só palavra. Alem disso, ele ensinava na parte francesa do colégio, e eu estudava na brasileira. Em casa, eu só falava dele. Papai, mamãe, meus irmãos, nossa avó, todos sabiam. Um dia, tive de levar uma aluna nova no liceu, e cuja mãe era amiga de minha mãe, pra almoçar com a gente. Eu sentava em frente `a papai na mesa, e sempre que ele ironicamente se queixava, ou se fazia de mártir, eu lhe dizia, como se ele fosse um menino que queria mimo, “Você é um Lindão”.
Mas depois que outra amiga de mamãe resolveu adotar aquela palavra que EU inventei pra papai, e que ela aplicava a qualquer coisa que achasse bacana, enquanto mandava olhares para ele, senti minha palavra totalmente banalizada e parei de chamar papai de Lindão. Mas ele foi fiel ao “Lindinha” para sempre.
Poucos anos depois, ele e mamãe se tornaram um casal toxico que não parava de brigar na nossa frente. Ele, que já devia pensar em pular fora, desenvolveu um prazer requintado em ser chato. Criticava-nos sem parar, fazia pregações pessimistas e derrotistas.
Vim a saber por minha mãe que quando nasci, ela me rejeitou aos berros ao ver que eu era menina. Já tinha tido minha irmã mais velha sete anos antes, e deve ter imaginado durante nove meses da segunda gravidez, que eu seria “o” menino que queria. Desesperou-se porque já não era jovem pra ficar tentando indefinidamente, e foi papai que me acolheu em seus braços. Quando cresci, de vez em quando ele dizia ter sido quem me deu calor maternal.
Ayahuasca me trouxe de volta memorias de infância que me mostraram isso nos meus primeiros anos. Mas a recuperação de quem papai foi para mim no início da adolescência veio do papo com minha amiga. Lembrei-me que, na mesa de almoço em nossa casa, eu sentava em frente a ele e muitas vezes, quando o chamava de Lindão, saía do meu lugar e ia até ele abraça-lo. Mas a tal menina que levei pra almoçar tinha o hábito sentimentaloide de chamar meus pais de tios, embora não fosse parente. De repente, resolveu dizer na sua voz fina e irritante: Acho o titio muito mais bonito do que o professor francês!
Papai era vaidoso e disse pra mim com um sorriso:
Viu só?
Me deu vontade de dar um soco na cara daquela garota. Comparou o que não era para ser comparado só para puxar o saco. Papai era bonito, mas bem mais velho que o professor, não tinha nada a ver.
Nos anos em que papai se tornou chato, aquela cara afetuoso do passado se perdeu para mim. Até dei força pra ele sair de casa quando se apaixonou por uma jovem aventureira, e acreditei no amor entre eles. Eu só tinha 19 anos e pensei que já que a moca tivera um passado barra pesada e fora maltratada por muitos homens, como papai não parava de contar, podia bem se apaixonar por um cara educado, artista, e com uma sede desenfreada de criar uma musa, embora fosse muito mais velho que ela. Quanto `a mamãe, que vivia ameaçando divorcio nas brigas cronicas que tinham, achei que iria se aliviar. Na minha juventude e inexperiência, imaginar como as pessoas são contraditórias e quando brigam dizem o que na verdade não sentem. Em poucas palavras, mamãe não queria divorcio nenhum. Quando foi morar com a outra, papai ainda ficou mais chato. Visita-lo era um suplicio. Só fazia reclamar da decadência da família, prever o fim do mundo, e dizer que éramos incompetentes.
Depois q muitas águas rolaram, tendo eu vindo morar nos Estados Unidos e feito família aqui, soube que ele estava com câncer terminal. Em julho, o primeiro medico que o viu achou que ele só tinha 3 meses de vida. Nos Estados Unidos, as crianças estavam em férias quando eu soube, e fomos para o Rio em família. No meio de sua via crucis, papai tinha recuperado a proximidade que tinha com a gente antes da chatice que desenvolveu através das brigas com mamãe.
Tweety, minha filha, já tinha 5 anos. Mas aos dois, já tinha se ligado a papai. Durante refeições em restaurante, coisa que criancinhas não suportam, ele era capaz de entretê-la. Inventava construções com os guardanapos e brincadeiras com os talheres. Rolava a maior afinidade entre eles. Sei la como, ontem, jantando num restaurante com um grupo, ela e eu nos lembramos de papai ao mesmo tempo. Eu então lhe contei que quando ele a viu já com dois anos, observou-a caminhando e disse, como escultor que era: “Que bom, ela tem os aprumos de uma americana e o gingado de uma brasileira!”
Revelei esse elogio ao pai dela, crente que ele gostaria, mas o cara ficou todo chocado, como se papai fosse um pedófilo. Devo dizer que o marido tinha sido educado no suprassumo da caretice e repressão do Midwest americano. Devido ao estado de papai durante aquela estadia, eu as vezes pedia ao marido puritano para ficar com Tweety durante algumas horas para ela não passar o dia inteiro no apartamento de papai entre enfermeiras e adultos cuja língua ela nem entendia. Mas um dia, eu mesma fui levá-la ao parquinho perto dali. Estava sentada em um daqueles bancos, quando mamãe me chamou, dizendo que minha irmã havia convidado uma jornalista lá no apartamento de papai.
“Não sei o que fazer, seu pai já disse que não quer que mulheres venham visitá-lo, ainda por cima quando não as conhece!”
Eu já sabia daquilo. Minha irmã, que morava em SP, se mudara para o apartamento de papai com a intenção de ajudar, ou despedir-se, ou as duas coisas. Mas já estava cansada de conviver com a proximidade da morte e resolvera “abrir janelas” que não deviam ser abertas. Pedi `a mamãe que levasse o telefone até ela, e disse-lhe que cancelasse o convite que tinha feito à jornalista.
“Ela já está a caminho”, minha irmã falou.
“Então eu vou praí pra mandar ela embora!”
Não foi preciso, porque a jornalista já estava chegando e minha irmã a despediu na porta do apartamento.
Mas numa das vezes em que deixei Tweety no hotel com meu marido, quando fui visitar papai, fumei um baseado que não lembro como arranjei e dei uns tragos antes de sair, dizendo ao marido que seria uma boa ideia, quando voltássemos pra este país, incorporar aquele hábito na nossa rotina. Já havia sentido como ele se tornava mais acessível e descontraído nas poucas vezes em que tínhamos fumado, e ótimos papos rolavam entre nós. Mas o cara ficou uma fera, e gritou que se eu tentasse aquilo, iria se divorciar de mim. Achei-o absurdo e machão. Bati a porta do quarto gritando que ele fizesse o que bem entendesse, pois eu iria fazer o que tinha proposto. Eventualmente, ele pediu desculpas, incorporamos o fumo no final do dia, e ele sempre me agradeceu pela ideia.
Aquele último mês de papai foi super difícil, e, no Rio, eu já tinha me viciado em narcóticos de farmácia pra aguentar ver a dor dele, e suportar a minha.
Na rua, eu procurava um táxi, quando ouvi minha irmã me chamar de dentro de um carro. Uma amiga sua dirigia, e a deixaria na casa de papai. Assim que sentei no banco de trás do veículo, minha irmã me mostrou uma estatueta que fizera com, se não me engano, ajuda daquela amiga. Tendo saído da luz do sol para a sombra concentrada de dentro daquele carro, e estando sob o efeito do “fumo”, vi, na silhueta da escultura, a forma de um pênis. Tratava-se de um casal abraçado, e o espaço entre as cabeças do casal, quando de perfil, parecia o topo de um pénis.
“Voce fez um pirú?” Perguntei `a minha irmã.
“Pirú? Que pirú? Tá louca?”
Naquele momento, eu já enxergava os detalhes da escultura, vi que eram duas pessoas se abraçando, e morri de rir. De qualquer forma, minha irmã já havia feito uma serie de pequenas esculturas eróticas, e atribuí a sua indignação com meu engano `a presença de sua amiga.
Quando entramos no quarto de papai, deitei-me ao lado dele, em sua cama. Descansei a cabeça em seu ombro, e tentei esconder as lagrimas que pularam dos meus olhos. Mas ele sentiu, e me disse que eu tentasse não ser tao sensível:
“Também sou assim,” falou. “Mas a vida fica mais difícil...”
Enquanto isso, minha irmã, que havia se sentado na cadeira perto da cama, resolveu se retirar, dizendo, com impaciência:
“Quer se despedir do papai, então vou sair!”
“Pode ficar aí! Não programei nada, cara!” respondi.
Mas ela já se ia porta fora.
Naquele ponto de minhas recordações, eu e Tweety tínhamos lagrimas nos olhos. Perguntei a ela se ela queria que eu parasse de falar em tudo aquilo, e ela me disse pra continuar:
“É triste, mas é bonito...” concluíra, na sua delicadeza.
A mesa estava cheia, meu filho tentava se comunicar com outros na extremidade oposta e falava alto. Pra ser ouvida, eu tinha que falar bem perto do ouvido de Tweety. Mas ela queria ouvir tudo. Não tem medo do sentimento.
Cheguei então, ao que considero o “milagre dos olhos”:
Na véspera de sua morte, papai ficou em coma. Havia pedido que nós acelerássemos seu fim, se viesse a precisar usar fraldas, ou estivesse sofrendo muito.
“Assim como eu fiz com meu pai” ele tinha nos dito, antes de cair num pranto que não pode controlar. Estávamos `a mesa de jantar no seu apartamento, e me levantei de minha cadeira, como no passado, e fui até ele, botando seu rosto contra meu peito e o abraçando. Ele andava se cobrando fazer, ou concluir, mil projetos. Tudo que eu pude lhe dizer naquele momento era que ficasse tranquilo, para se dar umas “férias” e parar de se cobrar, coisa que ele fez durante toda a sua vida. Só isso. Não podia lhe dar uma esperança a qual sabíamos ser absurda, e só nos restava a comunhão daquele abraço.
Meu irmão tinha pedido a mim arranjar permissão do medico para que os enfermeiros aumentassem a morfina de papai, quando ele chegasse ao ponto que queria evitar. O medico concordou, mas avisou que devíamos estar preparados para não se arrepender quando o víssemos em coma. Poucos dias depois da noite em que papai chorou, o encontramos se debatendo sob as tentativas dos enfermeiros colocarem a máscara de oxigénio sobre o rosto dele, o que antes ele aceitava sem problema. Seu sofrimento era terrível; a hora tinha chegado. Acenei para os enfermeiros, e eles aumentaram a morfina. Na tarde do dia seguinte, papai partiu. Mas seus olhos, cada um olhando pra uma direção, se recusavam a se fechar. Minha irmã, minha mãe, e os enfermeiros, tinham tentado, sem sucesso. Mas quando o vi dentro de um caixão, resolvi tentar.
“Pode desistir!” disse minha irmã, antes que eu tocasse nele, “que nem eu, e nem mamãe conseguimos. Nem os enfermeiros, que são treinados conseguiram!”
Mesmo assim, me aproximei de papai. Até então, eu usava um anel de forma hexagonal que era copia de um original da Grécia antiga. Gravado no seu lado inverso, havia dizeres, em grego, significando, “Boa sorte para quem usa este anel”. Papai seria cremado, como desejava. Tirei o anel e o coloquei, sem que ninguém percebesse, e com dificuldade, pois o rigor mortis já tinha tomado conta dele, sob suas mãos cruzadas. Depois disso, consegui fechar seus olhos, passando levemente a mão sobre eles.
“Isso é lindo!” disse Tweety.
“Desculpe se te entristeci”
“Tristes ou não, memorias bonitas devem ser compartilhadas... Grandpa Edgar is with us, eu sinto ele presente muitas vezes!”
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