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Samba Chula: O Canto das Três Raças.

 

Antonio Solberg Coelho
Antonio Solberg Coelho

Curta "Na Relíquia do Samba", de Antonio Solberg Coelho estreia nesta quinta-feira, 12, na Mostra O Samba Ainda Está Aqui, no Rio.


Mestre Aurino de Maracangalha e uma viola machete. Um homem, sua voz, e seu instrumento. A fusão de histórias, espiritualidade, e terra em música dentro de uma casa em Maracangalha, no Recôncavo Baiano. E não é apenas qualquer música — é sincopada e ancestral, um ritmo bantu de Angola resiliente ao colonialismo e ao silenciamento histórico.


Através de cadência e improvisação, não apenas representa a miscigenação — ela encanta as cosmologias e visões de mundo nascidas dela. Precisamos do Samba Chula para contar a história da identidade brasileira porque ela carrega uma contra-história musical de vozes Indígenas, Africanas, e Portuguesas — as etnias formadoras do país — em meio às forças silenciadoras do colonialismo e capitalismo.


O Samba Chula tem origem no Recôncavo Baiano, em comunidades rurais historicamente ligadas à exploração da cana-de-açúcar — Santo Amaro da Purificação, São Francisco do Conde, Cachoeira, São Braz, Maracangalha, entre outras. Entoado em rodas, apresenta a viola machete (viola portuguesa de 10 cordas), pandeiro, atabaques, e acima de tudo, versos intrincados. As letras de Aurino saúdam Orixás, animais, falam de trabalho e amor. Ela é ligada à terra, à cosmologia cabocla, ao que Alejo Carpentier descreve como o real maravilhoso — uma aura surreal eterna que revolve as terras latino-americanas; metamorfoses e personificações de animais, maneiras de subverter o sistema colonial.


Em vez de ver essas práticas ancestrais como tradições estáticas, deveríamos reconhecer a necessidade de adotar o que Simas chama táticas de adequação transgressora — sincretizando Orixás com santos católicos, tocando ritmos do Congo em tambores de banda marcial — entendendo-as como essenciais para a persistência das culturas de brecha. Como Zé Pelintra, a cultura vive em uma canoa que balança constantemente e sua sobrevivência requer um equilíbrio gingado — o balanço de quem não pode se dar ao luxo de cair.


O Samba Chula vive nesse espaço duplo: entre o sagrado e o profano, a repetição e a improvisação, o silêncio e o som. Ela não apresenta um folclore congelado, mas sim saberes para guiar um futuro ancestral.


Dessa forma, o Samba Chula perdura sem embalagem institucional — tirando força de suas raízes, não do alcance de seus galhos. Apesar de não ter estrelato internacional, representa os caboclos do Brasil — milhões de corpos frequentemente deixados de fora das narrativas midiáticas. Esse paralelo reformula o Samba Chula não apenas como “tradicional”, mas radical. Ele não se opõe à globalização recuando — mas contraria ao sincopar o ritmo previsível da assimilação cultural, quebrando expectativas, como o surdo de terceira em uma bateria de escola de samba. Como Simas observa, tal tambor não marca o ritmo implícito — ele o rompe, cria espaço, desconcerta o normal.


O Samba Chula é o surdo de terceira da história do Brasil.


Quais são as consequências da globalização para tradições nativas como o Samba Chula? As respostas ressoam por toda a história brasileira. Sob pressões de visibilidade e comercialização, até as expressões mais enraizadas correm risco de serem moldadas — a mercantilização pode achatar o ritual em espetáculo. Reconhecimento internacional, como status da UNESCO, pode preservar um produto cultural — embora muitas vezes o desconecte das comunidades que sustentam sua alma. Essa institucionalização também pode servir para adestrar a própria cultura, como Luiz Rufino lembra — o sistema dominante busca domesticar corpos e interditar línguas.


Fredison Silva examina como Filhos da Pitangueira, outrora um grupo de Samba Chula baseado na comunidade, foi empurrado para palcos globais sob a lógica do turismo de patrimônio. Embora isso trouxesse prestígio, também ameaçou congelar a tradição — transformando-a em peça de museu, performance roteirizada em vez de experiência vivida. Perder a vivacidade do Samba Chula é esquecer modos de ser. Quando ritmos ancestrais são silenciados, não perdemos apenas canções, mas também epistemologias — modos de saber, relacionar, viver — as sociabilidades mundanas que dão sentido à vida.


Esse silenciamento não é acidental — ele reflete um sistema que privilegia lucro sobre musicalidade. Na indústria do entretenimento de hoje, o valor de uma música é atrelado a streams, algoritmos, e viralidade. Mas a música ancestral não funciona assim. Ela é erguida com cooperação, presença espiritual — não tendências de mercado. Ela pede transe, não consumismo. A indústria musical não se alinha com música duradoura — ela busca comercializar canções efêmeras com data de validade, como drogas, para viciar ouvintes no próximo hit em um incessável e tóxico ciclo capitalista.


Nesse contexto, o Samba Chula é economicamente inviável, ainda que culturalmente indispensável. Seu valor está em como vitaliza: em como invoca a roda e os Orixás para dançar e festejar. Como Simas observa, cultura não é feita de fachadas — é feita de memórias, aspirações, fracassos, tragédias. Uma canção como “Tatu Vezeiro” pode não bombar na mídia, mas carrega consigo séculos de relações simbióticas coletivas com tatus. E isso por si só vale mais que um disco de ouro inflado por streams falsos, que em breve será esquecido.


Essa dissonância entre valores culturais e capitalistas também é premeditada por mecanismos em jogo. Como Ross Gay escreve em "Loitering Is Delightful", sociedades capitalistas modernas policiam espaços públicos para eliminar sociabilidades que não servem à produtividade. Samba Chula, nesse contexto, torna-se um ato de vadiagem cultural — uma recusa a apressar, a produzir, a ser otimizado. Vadiando entre ritmos e comunidades, fora do tempo capitalista.

A tese de Luciano Xavier sobre o Grupo Pinote expande ainda mais essa ideia: através de poéticas orais, improvisação, e performances enraizadas em identidades locais e relacionais, o grupo recusa ser formatado em produto pronto para consumo. Eles operam entre fronteiras — literais e simbólicas — reivindicando o direito à fluidez em um sistema obcecado por uniformidade.


Da mesma forma, Cássio Lima mostra como a viola machete na Bahia funciona não apenas como instrumento, mas também como uma veia de memória — ancorando a prática em lentidão, corporeidade, e intuição. Juntas, essas percepções mostram que o Samba Chula resiste não só ao apagamento, mas também à aceleração. Ela nos convida a desacelerar e lembrar — a valorizar presença acima de produtividade, relação acima de reconhecimento.


Porém, sustentar essa presença tem um custo. Em uma indústria dominada por espetáculo e comercialização, contracolonialidade é uma abordagem financeiramente arriscada. Alguns podem argumentar que artistas como Bad Bunny promovem causas sociais apenas para fortalecer sua imagem pública. É possível subverter enquanto impulsiona o mercado global?

Dá para filmar música sagrada sem transformá-la em conteúdo? Até eu lutei com essas questões ao fazer meu curta “Na Relíquia do Samba”. Preocupei com todos os aspectos da edição, da cor à mixagem de áudio — sobre falar em vez de escutar Mestre Aurino. Resiliência cultural é uma adequação transgressora negociada — ela sobrevive não por evitar compromissos, mas por dominar a arte de navegá-los suavemente.


Esse ato de equilibrar torna-se ainda mais difícil à medida que a globalização afasta as gerações mais jovens para longe da herança comunitária. Gêneros americanizados como o trap oferecem rotas mais acessíveis para a fama, muitas vezes prometendo reconhecimento e retorno financeiro mais rapidamente. Em contraste, o caminho para se viver do Samba Chula permanece estreito. Requer apoio institucional que não congele a tradição. Requer um público disposto a escutar e apoiar — não apenas consumir. E requer artistas que, como Aurino, enxergam o cantar não como trabalho mas como causa. E talvez seja essa separação entre o ganha-pão e arte que faz os Sambas mais fiéis — Cartola, pedreiro e lavador de carros no Rio de Janeiro por toda vida, só gravou seu primeiro LP aos 64 anos, e logo se tornou em um dos mais celebrados compositores brasileiros.


Do meu próprio jeito, segui caminho similar ao começar minha carreira cinematográfica em Maracangalha com Aurino — não buscando ganhos financeiros, mas trabalhando pelo Samba Chula. Quando comecei a filmar “Na Relíquia do Samba”, não fazia ideia da profundidade do impacto que teria em minha identidade. Mais tarde, ao percorrer minha ancestralidade tupinambá Paraguassú até o Maranhão, me perguntei se histórias de meus ancestrais ecoavam nos versos que eu estava gravando próximo ao rio Paraguaçu na Bahia — e quantos brasileiros desconhecem as tradições de que descendem?


Em “Quem Sabe Ler Não Trabáia”, Aurino dá uma cutucada crucial em como alfabetização e trabalho rural são estratificados desde o Brasil imperial, quando ler era proibido aos escravizados — assim bloqueando acesso deles à educação, participação política e ascensão social. Esse mecanismo colonial não desapareceu; ele evoluiu. Hoje, seu legado ainda atua em favelas e zonas rurais pelo país, onde escolas públicas são subfinanciadas, sabedoria cultural é descartada como folclore, e jovens são empurrados para o trabalho precário ao invés de serem empoderados pela educação. Nesse contexto, o papel da Samba Chula torna-se ainda mais urgente. Seus versos não são apenas composições — são arquivos de um passado que não podemos esquecer.


O Samba Chula não exige atenção através de volume ou espetáculo — ele insiste através de presença. Ele vadia entre os espaços que a história tenta selar, ecoando na terra onde nasceu. Em seu ritmo, encontramos uma verdade diferente: não-linear, imperfeita, mas viva — pulsando com tudo que o Brasil tentou esquecer e tudo que ainda pode lembrar. Em um país obcecado por eficiência, aparências, gols, produtos exportáveis, e material contável, o Samba Chula escolhe vadiagem, verdade, e processos de lapidar que levam a experiências inestimáveis que refletem identidades autênticas.


É por isso que precisamos dele — não apenas como tradição, mas como rito oral de memória, oposição e continuidade. Não é simplesmente um arquivo do passado, mas um instrumento que improvisa com ancestralidade, contradição, e cuidado. Ele retumba o coro de três raças entrelaçadas em harmonia — e essa ressonância importa justamente porque está fora do compasso comum. Eu recordo aquela noite em Maracangalha — o suor na testa de Aurino enquanto cantava do coração. Achei que estava gravando uma forma musical. Mas o que estava capturando era um modo de viver. Uma cosmologia distinta.


O Samba Chula nos lembra: o Brasil não é uma história, mas muitas — vozes plurais cantando em síncopes, dançando ao redor da batida. O futuro do Brasil não mora na uniformidade, mas em ideias rítmicas sobrepostas.

O filme Na Relíquia do Samba, de Antonio Solberg Coelho tem estréia mundial na mostra O Samba Ainda Está Aqui, nesta quinta-feira, dia 14 de Agosto, no Teatro Carlos Gomes.


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Serviço: O Samba Ainda Está Aqui

local: Teatro Carlos Gomes / Praça Tiradentes, s/n

Entrada Franca: a partir das 17 horas.

A estreia da mostra O Samba Ainda Está Aqui contou com excelente público, segunda-feira, dia 11.

Estreia da Mostra, com o filme "Eu Sou o Samba, mas pode me chamar de Zé Ketti, de Luiz Guimarães de Castro

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