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Foto do escritorEleonora Duvivier

Os Amantes




O amor deles era tão intenso que Deus lhes permitiu fundirem-se e viverem no mesmo ser, que formava uma bola dourada do tamanho de uma laranja. Eram, então, únicos nos olhos do Criador.


Mas um dia, uma criatura que fazia doer a mente divina teve que explodir de dentro dela, juntamente com uma infinidade de estrelas. A criatura começou a flutuar no cosmos, vindo a girar em torno do sol, até finalmente aterrissar no planeta Terra. Para isso, precisou de serviços particulares a cada um dos amantes e causou o fim da laranja dourada; do amor único diante de Deus. Fadados à sua função, os amantes se sentiram abandonados pelo Criador e, separados para poder desempenhá-la, cada um deles, assim como a criatura cuja existência acabara com a beatitude que tinham sido, começou a girar em torno do mesmo sol, até descerem, em sincronia com a tal criatura, neste mesmo planeta. Esta, que até então nada enxergava pois que só percebia com o sentimento, colidiu com um dos amantes, o que se chamava “Espaço”, fazendo-o virar uma superfície que a sustentava, sobre a qual podia andar, e cuja extensão, externa aos seus limites físicos, foi ocasião para que ela ganhasse o sentido da visão. Mas Espaço, desesperado de saudades de seu amante, passou a detestar a criatura a que servia de chão.


Como poderia ele, com um peso em cima de si, procurar por sua outra metade, recompor a laranja dourada e regressar `a beatitude perdida? Até quando aquela criatura precisaria dele? E o amante de quem fora separado, qual seria sua utilidade àquela excrecência?


Sem parar de olhar o céu na procura de seu amor, Espaço começou a sentir as plantas que lhe cresciam, águas revoltas que surgiam sobre si, inundações aqui e ali. Cativo e triste na sua eterna busca, tudo aquilo lhe era indiferente. Outros animais também tinham nascido sobre ele, e a criatura, que era bem peluda, se portava como estes, que também tinham olhos pra ver a pele de Espaço sob suas patas e para enxergar todos os outros seres.


Atacavam-se para se comerem e não registravam nada adiante do nariz, adiante do que veio a se chamar “instinto”. Ainda indiferente a todos, Espaço se consolava porque obedecia a Deus, mas ansiava mais e mais voltar `a comunhão com seu amante. Na infinitude de sua busca, quase não notou quando a criatura e seus descendentes, os únicos seres que andavam sobre duas pernas, inauguraram a diferença entre presente e futuro, causa e efeito. Havia vezes, segurando artefatos que a princípio não pareciam ter sentido, atacavam e no momento seguinte os impeliam contra algum animal, fazendo-o cair por terra e o devorando.



A partir de então, não tardou muito para que Espaço visse sobre si as construções que as criaturas começaram a erguer. Uma delas já tinha notado que as sementes das frutas, ao caírem na terra, germinavam e davam mais frutas que ela e seus semelhantes podiam comer, e o capim dava origem a mais capim com o qual alimentavam animais que elas próprias também comiam. Logo, começaram a armazenar frutos e esses animais comíveis para o futuro, e, libertando-se da tarefa de constantemente ter que buscar alimentos, ficaram sedentários e puderam desenvolver outras atividades. Com a diversificação de seu trabalho foi inventada a civilização, e as primeiras cidades foram erguidas sobre a extensão do corpo de Espaço. Ainda indiferente a toda aquela zona, ele voltou a olhar as estrelas de onde tinha caído e a clamar por seu amante.


No momento eterno em que ainda pensava viver, não percebeu nem o devir nem a deterioração de tudo sobre ele. Ainda indiferente, se consolava porque servia a Deus, mas não parava de ansiar por renascer na laranja dourada. Desprezando toda aquela zona, ele voltou a olhar as estrelas de onde tinha caído e a clamar por seu amante:

“Tempo! onde está você? Volte pra mim! Vamos comungar novamente na laranja dourada!”

Sem resposta, olhou cabisbaixo pra seu próprio corpo, sobre o qual todos viviam, e percebeu que vez por outra alguém ficava numa imobilidade gélida e todos os seus semelhantes choravam `a sua volta, antes de cavarem a terra e o jogarem num buraco.


“Que gente infeliz” pensou, “Por que quis o Criador que eu os ajudasse? Por que me tornou útil? Pro meu amado, eu só precisava ser eu mesmo em sincronia com ele ao invés de servir de chão e de extensão! Éramos a joia de Deus, seu próprio espelho. Mas quando Ele consentiu que lhe saísse a criatura da mente, as estrelas, essas outras joias lindas, surgiram de nós! Foi então que logo depois essa criatura precisou de mim para aterrissar e fui separado do meu amor!” lembrou-se entristecido.


Não ousou questionar o sentido de tudo aquilo por respeito ao Criador, mas nem assim se conformava e passou a desejar algo que até então lhe fora desconhecido: um “fim” para aquela situação.


“Se as criaturas acabam” pensou ao olhar o grupo que chorava `a volta de alguém imóvel” “Tudo isso também deve acabar! E Tempo, o meu amado, voltará a ser comigo a laranja dourada, o único amor em que Deus se reflete!”


Com novas forças, enviou a seguinte mensagem a Tempo:

“Você ficou insensível a mim ou ficou surdo? Por que não me responde? Os bípedes escravizaram você também? Por que nem posso te ver?”


Foi então que, durante uma mudança sutil que Espaço pode notar numa das criaturas, no momento em que um fio de cabelo branco lhe apareceu na cabeça, ele ouviu uma voz fantasmagórica que parecia vir do coração dela:


“Por que sou invisível!”

“O que? É você mesmo, amor?”

“Vivo dentro de tudo e por isso não posso ser visto!” foi a resposta longínqua.

“Então o que você faz por esses seres estranhos?”

“Enquanto você é chão pra eles, eu sou passagem, foi Deus que quis assim!”

“Como você é inteligente!” Espaço remarcou com orgulho. “Você sabe por que Deus quis assim?”

“Foi pra transformar a distância de todas as criaturas na possibilidade de retorno a Ele!”

“Mas isso não seria preciso se nem os tivesse deixado sair de dentro de sua mente divina!”

“Mas só com a liberdade de errar e se afastar, eles podem retornar e se redimir!”

“Mas se não se tivessem distanciado, nem precisariam se redimir!”

“Isso eles ignoravam.”

“Podiam continuar ignorantes e nós nunca teríamos nos separado!” reclamou Espaço.

“Nós conhecíamos a benção em que vivíamos, mas eles precisavam retornar para conhecer a deles. Entende por quê?”

“Acho que não…”

“Porque os verdadeiros paraísos são os paraísos perdidos!”

“O verdadeiro Paraiso é então um reencontro!”

“Assim como com eles, será para nós. Nossa bem-aventurança ao voltarmos a um ser único vai ser tão maior que nem mais precisaremos dar outras joias para Deus! Nós e as estrelas regressaremos ao coração divino…”


 

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