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LUCIO COSTA


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   Lucio era um exemplo de integridade. Era primo de minha mãe, e eu tive a oportunidade de conhecê-lo desde criança.     


   Vou citar Oscar Wilde em umas das palavras mais lindas que o poeta irlandês disse sobre Jesus, porque também descrevem Lucio. Considerando Jesus o primeiro individualista, Wilde diz: “Para ele, não havia regras, somente exceções.”


   Tendo essa mesma capacidade de ver o único, o singular, na multiplicidade, Lucio também estava além de regras e de tudo que é unilateral. Não se afiliava nem ao comunismo, nem ao socialismo e nem ao capitalismo, declarando que todo “ismo” era um exagero. Afinal, os “ismos” igualam a diferença entre as pessoas através da doutrina a que os submete, enquanto Lucio fazia questão em manter viva essa diferença. Reclamava até quando se comparava alguém a seu pai ou sua mãe, e dizia: “Ele não é nenhum e nem outro, ele é ele mesmo!”


    Como genuíno individualista, Lucio era capaz de entender posições opostas e acolher pensamentos diferentes sem preconceito e nem julgamento. Cheguei a ouvir políticos, como Jânio Quadros e Roberto Campos, declarar que ele era um santo, fato unanime entre todos que o conheciam.


   Em termos de autenticidade, comparo Lucio `a Simone Weil, que, quando era socialista, teve de viver ela própria, frágil e doentia, o que passavam os trabalhadores que defendia, empregando-se numa fábrica em condições desumanas durante dois anos.


   Assim era Lucio que, ao contrário de tantos que promovem doutrinas altruístas mas vivem numa opulência que nada tem a ver com o tipo de vida que elas pregam, Lucio vivia simples, quase pobremente, mas de acordo com o desapego e o amor ao próximo em que acreditava.  Desarmado, nunca trancava a porta de seu apartamento, e quando saia, nunca se resguardava contra assaltos. Uma vez, foi com mamãe durante o carnaval ver os blocos de rua na cidade. Dois homens lhes deram um encontrão proposital, e no tumulto que causaram, roubaram-lhes as carteiras.


   “Que pena, logo hoje que eu não tinha dinheiro nenhum!” disse Lucio, na sua compaixão santa.

    Lucio foi meu pai espiritual. Durante a fase mais difícil de minha vida, a aprovação que ele me dava me fez considerá-lo meu passaporte para o mundo. Quando papai deixou mamãe, eu tinha vinte anos.  Insegura com sua nova situação, ela passou a censurar a minha liberdade e a maldar a minha conduta.  Achei que aquele desencontro entre nós duas, na fase em que eu estava, seria o meu fim. Mas Lucio disse à minha mãe que não se preocupasse comigo porque eu tinha um halo de pureza `a minha volta e o que eu fizesse seria sempre puro. Claro que quando mamãe me contou isso, toda aliviada e orgulhosa, eu me perguntei se a atitude que eu achava simplesmente espontânea, da minha parte, merecia ser interpretada com tanta excelência e bondade.


   Uma vez em que o visitamos, eu e meu irmão éramos bem pequenos. Ele nos apresentou uma coleção de brinquedinhos que havia guardado de suas filhas, e enquanto conversava com mamãe, nós montamos com os brinquedos uma espécie de cidadezinha ou pequenos mundos adjacentes. Na hora de partir, mamãe falou que botássemos tudo de volta no lugar. Mas Lucio lhe disse para deixar o que fizemos daquele mesmo jeito porque estava “tão bonito!”.


   Nem sempre eu entendia seus elogios. Quando o visitávamos, ele nunca nos deixava ficar muito tempo. Levantava-se, batia palmas e nos levava `a porta do elevador. Certa vez, quando eu era adolescente, ele me observou já de saída, com seu olhar tão meigo quanto profundo, e disse que eu era Leonardesca. Mamãe achou aquele comentário uma honra. Mas eu, que queria ser mais magra do que era e achava a Gioconda feia, só consegui dar um sorriso amarelo.


    Lucio tanto via beleza na grande arte, como em detalhes triviais que para outros passariam desapercebidos. Em certa ocasião, ele chamou minha atenção para um catálogo de telefone casualmente ao lado de um poster do rosto de sua neta: “Não está bonito o catálogo azul perto do rosto da Julieta?”


   Pensei que se alguém mais distante daquele urbanista e arquiteto mundialmente reconhecido tivesse ouvido aquele seu comentário, imaginaria que antes de fazê-lo ele havia pensado em alguma teoria de cores, formas, ou composição, para avaliar um detalhe tão casual.


   Já mais velha, perguntei-lhe se acreditava em Deus. Respondeu-me que não, mas que tinha o senso do sagrado. Daquela vez, entendi. Ao lado de sua implacável capacidade de indignação moral, ele demonstrava um respeito religioso `as menores coisas, como se a vida fosse um grande ritual em que cada ser valesse em si e por si, independentemente de qualquer utilidade material e de convenções.  Lucio sacramentava a realidade; estava em contacto com a alma de tudo.


    Era sempre optimista em relação ao ser humano e ao progresso. Achava que todas as crises ecológicas e mesmo políticas eram desequilíbrios passageiros. Com o tempo, percebi que seu optimismo nascia de sua coragem de ver o bem e de ter esperança; de sua imensa generosidade para dar um voto de fé aos homens a despeito da sombra dos fatos.


   Uma vez, fui com o poeta Thiago de Melo entrevistá-lo sobre a corrida armamentista entre os Estados Unidos e a Rússia. Thiago esperava que Lucio se manifestasse negativamente, mas ele simplesmente falou que as armas nucleares eram o que impediam tantas guerras que existiam no passado. Hoje em dia, não sei como se manifestaria, mas não há dúvida de que essas armas não deixam de botar um freio entre confrontos belicosos, mesmo no meio das guerras que existem.


   Quando eu estava de partida para Boston, onde estudei filosofia, Lucio previu que eu iria adorar Kant. Disse-me também que os Estados Unidos era um país incrível, que quanto mais se conhece dele, mais se vê que nada se conhece.


    Não tenho ideia de como ele pode prever a minha adoração por Kant, mas o fato é que acertou em cheio. Kant foi a minha redenção. E até hoje, relendo novamente a Crítica da Razão Pura, aqui neste país onde agora fazem uma palhaçada total do que se chamava democracia, e onde o reino da mentira digital prevalece e os golpes do vigário se multiplicam em todos os sentidos, só mesmo Kant para nos erguer acima da factualidade para verdades eternas, e para a exaustão do nosso pensamento ao acompanhar a humildade deste tão grande filosofo ao resgatar a fé e puxar os freios da razão pura para que não se intrometa na esfera do divino.


    Assim como Lucio que tinha a humildade de nem querer conceitualizar a divindade e a transmitia mais do que ninguém, com o seu “senso do sagrado”.


Cedro Rosa, certificando e distribuindo musica do Brasil para o mundo.




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Cedro Rosa, música certificada de alta qualidade.



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