Melhor Assim
- Leo Viana
- há 23 horas
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Atualizado: há 13 horas

A Cidinha tinha uma relação estranha com a ideia de “fim do mundo”. Geralmente ria quando alguém tocava no assunto. Criada em meio cristão, durante um tempo até se conformou com um cenário de volta de Jesus, arrebatamento e tal.
Mas nunca conseguiu se convencer da possibilidade de um Armagedom, de uma destruição absoluta, com extinção da raça humana, um mundo inabitável, etc. O tempo e a educação formal não fizerammudar essa opinião radical. Pelo contrário. Munida de elementos teóricos e de experiência de vida, defendia mais ainda um planeta praticamente à prova de destruição, salvo em caso de impacto de um grande asteroide ou daocorrência de um apagamento – ou superaquecimento - do Sol, que é quem garante luz e calor na medida certa pra essa vidinha da Terra.
Passou toda a faculdade de geografia pesquisando, num projeto orientado por grandes pesquisadores de renome internacional, as formas e possibilidades endógenas de destruição do planetinha azul. No final do doutorado concluiu que o mundo era praticamente indestrutível a partir de suas próprias forças. Mesmo que todos os vulcões se animassem ou que as placas tectônicas decidissem sacudir muito, que a atmosfera se revoltasse em vários furacões simultâneos, o mundo se salvaria. A tese foi contestada, mas serviu de alívio pra muita gente. Ao menos dentro do departamento onde a Cidinha fez o curso. As evidências pareciam atuarem contrário, mas muitas vezes o exercício intelectual não leva necessariamente à descoberta de uma verdade. Pode ser só um exercício mesmo. Enfim. A Cidinha tinha se convencido de sua própria hipótese e agora era a Dra. Cidinha, portadora de um título que a habilitava a defender o que sempre defendeu pela vida, desde menina.
O mundo, no entanto, parece ter começado a se rebelar contra os pressupostos da Cidinha. Ela mesma não ignorava que a discussão sobre aquecimento global antropogênico vinha acontecendo desde o final do século XIX e que se acirrou depois dos anos 1950, mas não via isso como uma ameaça.
Até que, após diversos relatórios do IPCC, vieram os filmes do Al Gore com as evidências claras de mudanças climáticas e a repetição sistemática de eventos meteorológicos extremos. Aquilo assustou o mundo, mas não a Cidinha.
Ela só sentiu o baque e começou a roer a corda da própria tese com a eleição do Trump depois do Obama. E depois dele vieram Bolsonaro, a guerra da Rússia com a Ucrânia, o Trump de novo e seus tarifaços, o Netanyahu e seu genocídio, as demonstrações de força da Coreia do Norte, a super China e seu poderio econômico e militar. Sem falar nos Sheiks movidos a óleo no oriente médio e na ascensão sem limites da extrema direita mundo afora e, claro, sem esquecer do suporte turbinado das redes sociais sem qualquer regulamentação e consequente liberação absoluta do ódio e das fakenews, como se as próprias verdades já não fossem suficientemente dolorosas. Ou inconvenientes, como disse o Al Gore.
Eu soube que a Cidinha, envergonhada do que já defendeu ardorosamente em seu passado acadêmico, botou o galho dentro e foi criar galinhas felizes num povoado isolado no alto de uma serra. Está plantando o que come e agora tem certeza que o mundo vai acabar.
Com essa gente solta por aí, não vai precisar de furacão, terremoto ou vulcão.
Dizem que a Cidinha vende uns ovos muito bons. E nem deixa os vizinhos saberem o que ela um dia fez da vida.
Melhor assim.
Rio de Janeiro, setembro de 2025.
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