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Juiz de Fora


Lais Amaral Jr

Pausa para um conto:

Dia 13 em Juiz de Fora*


O beijo em si, já fora uma indisciplina. Uma imprudência. E um beijo demorado como foi, poderia ter posto tudo a perder. Era pra ser uma rápida encenação. Um improviso para corrigir o deslize provocado pela surpresa. Os três ocupantes de um carro estacionado próximo à esquina da Rua Pedro de Carvalho, a uns cinquenta metros, certamente observavam a cena. Henrique enlaçou Bárbara pela cintura. Caminharam no sentido contrário ao automóvel suspeito. Entraram numa transversal, contramão, e saíram do campo de visão dos observadores. Pouco depois ele já estava num ônibus a caminho do centro da cidade.


Henrique e Bárbara tinham se visto pela primeira vez um ano antes, na cidade de Juiz de Fora, em uma reunião preparatória para o congresso da União Nacional dos Estudantes que aconteceria dentro de algumas semanas numa cidade do interior paulista. E fora uma agradável revelação para os dois. Ambos participavam do movimento estudantil e militavam em organizações distintas. Defendiam posições diferentes sobre o enfrentamento da ditadura militar. Bárbara era de um grupamento de inspiração trotskista e Henrique, ligado a uma das inúmeras cisões do PCB. Mas a divergência de pontos de vista não impediu a imediata e recíproca admiração. Uma atração só controlável pela atmosfera sisuda daqueles tempos ruins.


Terminada a reunião realizada na sala de um sindicato simpático ao movimento estudantil, o pessoal foi confraternizar num restaurante de comida típica, no centro da cidade. Era um estabelecimento tradicional que ocupava um prédio térreo, amplo e comprido cujas paredes eram franqueadas para que se escrevessem mensagens e recados. Todas aquelas garatujas, em formas, cores e tamanhos diversos, a primeira vista passavam uma falsa impressão de desleixo. Mas quando percebidas de perto, transmitiam uma agradável sensação de acolhimento e hospitalidade. Como costuma sobrar conversa nessas reuniões políticas, o pessoal cumpriu uma prorrogação depois do almoço. Os olhos de Henrique quando cruzavam com os de Bárbara, reluziam. Eram faróis na neblina.

Mas a timidez dela e a disciplina dele não permitiram que acontecesse algo mais do que olhares apaixonados, além de umas poucas palavras e num rasgo de ousadia movido à caipirinha, uma cantoria trôpega por parte dele. Uma canção que Elis Regina defendera num festival um ano antes e que Henrique vivia a assoviar. Ele registrou na parede os versos iniciais da canção:


“Amanhece preciso ir

meu caminho é sem volta e sem ninguém

eu vou pra onde a estrada levar

cantador só sei cantar...”.


E decretou, inebriado pelo clima atipicamente romântico, que aquela parede seria o contato entre eles dali em diante. Logo abaixo dos versos datou o encontro: ‘13 de setembro de 1968’.

Dias depois a vida pisaria no acelerador e Henrique, que escapara da prisão em Ibiúna, sumiria do cenário. Bárbara, envolvida com os estudos e as responsabilidades crescentes da organização onde também editava um jornal para a classe operária, não soube mais dele. Até que veio a tarefa de cobrir um ‘ponto’ num subúrbio do Rio. No Meyer. Era uma prática de segurança das organizações clandestinas que visava evitar a prisão de mais membros da resistência. O cidadão era um dirigente importante, que estaria próximo ao orelhão em frente a uma padaria num horário acertado e com um exemplar de determinado jornal sob o braço esquerdo.


O roteiro da tarefa dizia que ela deveria apenas passar por ele e fazer um aceno combinado. Bastaria isso para que a organização soubesse que o dirigente estava vivo. E livre. Só que ao se encontrarem, foram traídos pela mútua excitação que por pouco não os denunciou. Foi uma surpresa para ela constatar quem era o dirigente importante. Aproximaram-se e o instinto de Henrique acendeu a luz amarela. Ele percebera o automóvel suspeito. Deu-se então o beijo mais longo e apaixonado dos anos de chumbo. E nada mais aconteceu do que uma despedida apressada, longe dos olhos dos agentes. Henrique tinha uma reunião inadiável em Santa Teresa.

Bárbara que a partir daquele beijo passara a sonhar com uma vida a dois, o que nunca admitira nem nos seus mais inconsequentes devaneios, só voltaria saber de Henrique, quase um ano depois. Foi ao ver sua foto entre os presos políticos libertados na troca pelo embaixador americano. Sofreu só de imaginar o que ele teria passado nos últimos meses. E tudo, longe da sua proteção, do seu amor. Perdia-se angustiada só de pensar nas perversidades que ocorriam nos porões do regime militar. E agora ninguém tinha notícias dele. Poderia estar em algum país europeu, ou na Argélia ou em Cuba. Nem mesmo sabiam dizer qual o seu nome verdadeiro. Claro que Henrique era um codinome. A frustração de um amor que sequer se estabeleceu de fato, somado a algumas decepções com os rumos do ‘Movimento’ a levaram a se dedicar à conclusão do curso de nutrição e se afastar um pouco da linha de frente daquela guerra.


Passam os anos sem que Bárbara falhasse um treze de setembro sequer naquele restaurante em Juiz de fora. A ditadura vai fazendo água e começam a chegar os exilados. Bárbara, uma Penélope moderna que vivera a tecer um sudário de saudades, acompanha ávida cada noticiário de Rádio e TV. Lê todos os jornais e, nenhuma notícia de Henrique. Fez contato com antigos companheiros e as notícias eram desencontradas. Teria ido para o Chile, mas desaparecera depois da queda de Allende. A mulher peregrinou por instituições governamentais, órgãos remanescentes ligados à repressão, e a organizações de esquerda, que agora se juntavam a embriões de partidos políticos. Foi a redações de jornais e nada. Informações inexatas davam conta de exilados que resolveram ficar na Europa e de outros que clandestinamente anteciparam o retorno ao país para retomar a luta. Estes, ao que se sabe, foram todos mortos. Desde então, Bárbara passou a conviver com terremotos interiores. Uma confusão de sentimentos. Angústia, saudade, esperança. E pior, uma horrível sensação de abandono. Sentia-se relegada pela vida a um papel secundário.


Foi então que decidiu ela mesma escrever o epílogo do seu drama, elaborando mentalmente um final imaginário que lhe parecia menos frustrante e mais digno. Construiu para si mesma um enredo no qual Henrique retornara, sim, antes do tempo e, por dois motivos dos mais nobres: retomar a luta contra a ditadura e reencontrá-la (dois motivos que conferiam à memória dele, a nobreza dos mártires, o amor pelo seu povo e por sua amada). Ao tentar entrar clandestinamente por Foz do Iguaçu, fora morto juntamente com outros companheiros. Seu corpo, certamente, jaz numa cova coletiva sob a terra avermelhada daquela parte extrema do país.


Um enredo que servia também como uma luva para espantar a pavorosa hipótese de ele estar vivo e ter preferido ficar em outras terras. Vivendo outra vida, e quem sabe, completado por outro amor. A alma se espremia de amargura a se ver no drama da personagem de Sofia Loren, no filme ‘Girassóis da Rússia’. Na fita, a personagem peregrina atrás do marido que fora para a guerra, e que, por perder a memória, acabara por se casar com a mulher que o salvara da morte na neve. ‘Não! Ele morreu pela pátria e por mim!’ repetia em pensamento para espantar a versão assustadora do filme.


Por algum tempo o enredo imaginado apaziguava sua alma aturdida. Por algum tempo. Mas logo, de aturdida a inconformada, a alma de Bárbara passava a se contrapor ao enredo e a permitir luzir a esperança de um mísero contato, uma pista, uma dica sob os versos rabiscados numa parede em Juiz de Fora. E revisitava na memória, a promessa daquela tarde: “Essa parede será o nosso contato daqui em diante”. E sentia um frio de dor nos ossos ao lembrar dos versos: ‘meu caminho é sem volta e sem ninguém...’.


Com o tempo e as massacrantes exigências do dia a dia, as lembranças e as dores foram perdendo força, as visitas diminuindo e, aquela parede foi se esvanecendo na memória. A vida passava empurrada pelos anos e pela rotina comum aos dias. Logo, Juiz de Fora não existiria mais. A história escrevia seus parágrafos sem grandes sobressaltos. Friamente. Bárbara, viúva do destino e casada solidamente com a profissão, se constituíra em uma respeitada autoridade na área de nutrição.


E foi nessa trilha, que em certa manhã um telefonema mexeu com o seu retilíneo cotidiano: um convite para um trabalho que soara como uma gratificação por toda a vida. Veio de fraternos amigos agora no governo central que sabiam da sua competência. Foi convidada a integrar a coordenação de um programa de estratégia alimentar para a América Latina, coisa do Ministério da Saúde. Uma proposta de melhoria de vida para um mundo de desassistidos.

O convite revolve no fundo do seu espírito, uma parte da vida que parecia adormecida, como o lodo aquietado nas profundezas de um lago. O destino, certamente por zombaria, sacudira aquele estado de aparente letargia onde dormitava o longínquo entusiasmo juvenil. Claro que ela aceita o convite.


Antes de fazer as malas e rumar para o Planalto, sentindo que a novidade liberara ventos fortes que habitavam uma área remota da memória, toma uma decisão. Vai cuidar de um cadáver insepulto. Resquício de uma época governada por uma juventude apaixonada. Uma vida de perigos, emoções, utopia e esperança. Decide rever a parede do restaurante naquela simpática ruazinha de pedestres no centro de Juiz de Fora.


Embora continuasse charmosa, a Rua Halfeld não era mais a mesma. As fachadas das lojas haviam se modernizado muito. Profusão de cores, sofisticação e excesso de gente. ‘Como será rever os versos na parede?!’, pensou Bárbara ansiosa e caminhando com o coração a trotar. Mas nada do que via lhe parecia familiar. ‘Meu Deus! Não faz tanto tempo assim’. E continuou caminhando até ter a absoluta certeza que estava no local exato. Afinal, fizera uma dezena de vezes aquele trajeto. Parou em frente a uma loja de aparelhos de telefonia celular. Olhou em volta. Nada. Teria se confundido? Com a convicção abalada aproximou-se de uma carrocinha de pipocas estacionada junto ao meio fio e indagou ao pipoqueiro onde ficava o restaurante ‘Frango de Ouro’. A resposta foi uma bofetada que espantou a cor da sua face.


- Ah! Minha senhora, o ‘Frango de Ouro’ fechou já faz um tempo. Era aí nessa loja de celular.

Bárbara, atordoada, como que golpeada na cabeça, caminha lentamente no sentido da loja. Não ouve mais nada. Sente um vazio e uma leveza esquisita que o chão até parecia ter desaparecido de sob seus pés. Entra devagar, e num transe, observa lentamente o interior. Procura algo que a remetesse a outros tempos. Ocorreram mudanças no prédio com a instalação de divisórias reduzindo a profundidade da loja. As paredes laterais num forte tom de azul não lembravam em nada as alvas paredes rabiscadas de mensagens. O azul cobalto apagara irremediavelmente os versos daquela canção dos anos 60. As lembranças estavam definitivamente sepultadas pela modernidade.


Uma jovem atendente aproxima-se, mas Bárbara não retribui a atenção. Sai caminhando num silêncio de viúva e com uma certeza a varrer seu interior, ‘jamais voltar àquela cidade’. A forte claridade da tarde realça o castanho claro dos olhos. Ergue a cabeça e caminha firme entre os passantes. Não haveria de chorar. Já crê na certeza de que o verdadeiro amor sobrevive intacto na memória. Nas lembranças. Em alguma dobra do passado imutável. Por aí.


“Amanhece preciso ir

meu caminho é sem volta e sem ninguém

eu vou pra onde a estrada levar

cantador só sei cantar.” (O Cantador/Dori Caymmi/Nelson Motta)


*Do meu livro de contos ‘Chico Buarque no Olho Mágico’ que depois da pandemia, finalmente será lançado, em junho na Feira Literária de Resende e em julho na Bienal Internacional de São Paulo (perdoem o oportunismo).


 

Música.

Mariozinho Lago.



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