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Hábitos


Leo Viana

Eu e todo mundo já fizemos promessas pra nós mesmos, tipo resolução de ano novo, aquelas coisas que a gente jura que não vai fazer mais ou que vai passar a fazer. Eu fiz ao menos duas recentemente. Sei que é sempre difícil abandonar velhos hábitos ou adquirir novos apenas sob pressão de consciência e sem fiscalização externa, mas enfim, eu tinha me prometido dois hábitos novos. O primeiro era deixar de me chocar com hábitos e costumes. Tenho profunda admiração por quem não se impressiona com o diferente. Lembro do susto que tomei, ainda criança, na casa de uns vizinhos quando os vi comendo com a mão em torno de uma bandeja grande. Costumes legítimos, herdados de um passado africano e também indígena. Convidado, não consegui me juntar ao grupo. Isso tem bem mais de quarenta anos e ainda é uma memória viva. De lá pra cá mudei muito, estudei, viajei, conheci muitos e diferentes hábitos e costumes, sei me comportar diante da novidade, mas há um eu interior que ainda se sente desconfortável, apesar de entender que “em Roma, como os romanos” ou, “na China, como os chineses”. Depois, bem depois, Já mandei ver em mesas de lugares muito diferentes e com culturas bem distantes da minha, sem que ninguém notasse o espanto.


Se tenho voltado a me espantar mais recentemente, isso tem relação com o comportamento do brasileiro médio. Ele é conservador, religioso, piegas, família, gente boa e... desonesto!

Isso é muito mais estranho que comer com a mão, arrotar à mesa ou comer porco com molho doce (eu sigo me chocando com aquele barbecue obrigatório nas costelas suínas, mas sem fazer escândalo. É uma caretice só minha mesmo).


O Brasil é peculiar por diversas razões. Difícil definir a principal delas. Algumas são de triste constatação, outras não. Somos engraçados como o tombo de alguém na rua. Vem uma vontade de rir, mas é preciso ajudar e qualquer riso não deixa de sair sem um certo constrangimento ou a natural culpa posterior. Mas isso eu entendo. Luto contra, mas entendo.


O difícil é entender que o mesmo cara que condena o aborto em qualquer hipótese, mesmo nas previstas em lei, não veja nada demais na morte de jovens pela polícia. Ou que o mesmo cidadão que vai à missa, ou ao culto, com regularidade, ache normal que as milícias controlem seu ir e vir a um preço módico, afinal, “antes tinha o tráfico...”, eles gostam de dizer.


Eu sou um conservador em algum sentido. Certa ocasião, depois de um estágio de um mês num assentamento rural no interior de Santa Catarina, fui com a turma do estágio a uma praia naturista em Florianópolis. Éramos todos garotos pós-adolescentes de 20 anos ou menos. Na praia só havia mulheres. O resultado foi óbvio: muito desconforto e os seis caras dentro d’água o tempo todo.


Ainda nos tempos de universidade – é quando somos menos caretas, parece – planejamos uma manifestação, todos pelados, na praia de Ipanema, com uma faixa onde se leria “Imoral é a fome”. Nunca saiu da fase de projeto.


Vivo tentando romper com a caretice que me habita, uso umas roupas coloridas e tal, sou um careta contido, cuja face conservadora vive sob controle e sempre que, inadvertidamente, soltar uma piada com algum preconceito, vai se penitenciar depois, até deixar completamente de fazer isso.


Mas o que segue me atormentando de verdade é o descaramento do pastor que apoia o assassinato de oposicionistas, do padre que aceita dinheiro pra apoiar o governo, do médico que promete desligar os aparelhos do paciente que discorda de seu posicionamento “conservador”, do político que naturaliza a caixinha, a rachadinha, ou seja lá o nome que tiver prática semelhante, mas faz discurso de honestidade.


Eu sigo achando que imoral mesmo é a fome, que a mulher tem que tomar as decisões sobre seu corpo e que bandido bom é bandido condenado pela justiça – com provas, claro!! - e destituído dos bens.


Putz! Esqueci de falar sobre a outra promessa que tinha feito. Pois é. Eu tinha prometido parar de escrever em primeira pessoa!!


 

Confesso que esse texto é antigo. Tive mesmo que fazer uma pesquisa no blog pra ver se não tinha sido publicado antes.


Se o enviei agora, foi por pelo menos duas razões:


1 – Ele não perdeu a atualidade e um monte de caretas, no pior sentido que isso pode ter, quer manter e piorar a nossa já vexatória situação no mundo. Em outubro, nosso compromisso é recuperar a autoestima do Brasil. É voltar a figurar entre os países orgulhosos do mundo, entre os que tentam proporcionar o melhor pra seu povo e não pra seus ricos, basicamente;


2 – A semana que passou foi muito triste pra quem gosta muito, como eu, de samba. O cara responsável diretamente pela reconquista do Centro e da Zona Sul pelo samba nas últimas décadas, o cara que incorporava o melhor espírito boêmio carioca, que criou vários grupos, que conhecia os sambas que ninguém conhecia, que cantava, tocava e liderava uma roda como ninguém, nos deixou. O Rio de Janeiro das rodas de samba de botequim nunca mais será o mesmo sem Eduardo Gallotti. Figuraça, amigo querido, compositor de sambas inesquecíveis pra um monte de blocos. Um privilégio ter convivido com ele. Fica a alegria da lembrança e a tristeza de não encontrar mais com ele nas rodas por aí... Isso fisicamente, porque ele vai continuar lá e, pra quem prestar atenção, ainda corrigindo o andamento e a harmonia, como sempre fez!!


Rio de Janeiro, maio de 2022.


 

MPB Esporte Fino



Instrumental Brasileiro, no Youtube.



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