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FUTEBOL E MEMÓRIA


FUTEBOL EM BOM PASTOR_GARGAMEL

Desde o dia da decisão da Copa do Mundo de 1970, quando eu subia a Rua Lopes Quinta, no bairro do Jardim Botânico, de mãos dadas com a minha mãe, o futebol entrou na minha memória para ficar. No dia da final, contra a Itália, voltávamos à casa onde ela trabalhava como empregada doméstica. Lá mesmo morávamos. Quando bate saudade da minha finada mãe, essa é uma das imagens que mais lembro. Subíamos aquela extensa rua, levemente íngreme, vazia, silenciosa, atravessada por bandeirinhas verdes e amarelas penduradas em árvores e postes. Minha mãe era uma jovem destemida, que saiu grávida da cidade de Adamantina, interior de São Paulo, para ganhar a vida no estado da Guanabara. Com poucas alternativas, depois de um final de semana de descanso, estava pronta para mais uma semana lavar, limpar, passar, cozinhar e de mim preocupar-se.


O Brasil completava um pouco mais de 6 anos de ditadura civil-militar, que só terminaria com a eleição indireta, em 1985, de Tancredo Neves. Em 1970 eu não sabia nada de política e nem lembro de ter visto o jogo na televisão da dona Moema. Seu Júlio e dona Moema foram os primeiros patrões a assinarem a carteira profissional da minha mãe. E o tempo foi passando.

Até que entrei no Maracanã a primeira vez para ver o Flamengo jogar. Eu não passava dos 8 anos de idade. Morava na favela do Jacarezinho. Local próximo ao Estádio Mário Filho.


Nas noites de jogo, da laje, em qualquer ponto da favela, dava para ver a imensidão do feixe de luz produzido pelos potentes refletores instalados na cobertura do estádio. Para chegar, bastava pegar o trem na estação de Vieira Fazenda (que hoje se chama Jacarezinho) e descer na Mangueira ou na estação de São Cristóvão. Sair da penumbra que invadia os tuneis de acesso às arquibancadas iluminadas, como se fosse luz do dia, era impactante. A luz forte, se juntar à multidão, ouvir gritos e cantos da torcida, uníssonos, é mesmo abraçar a transcendência.  


Nesta mesma época o futebol entrava no meu repertório lúdico, jogávamos golzinho na Rua Vieira Fazenda, recém asfaltada, cercada de becos e biroscas. Foi nessas pelejas que adquiri cicatrizes nas pernas. Ao cair no chão, o asfalto não perdoava, a bola não parava. As feridas mais novas, conviviam com as mais velhas. Jogávamos todos os dias, diante da paciência dos mais velhos, dos motoristas de caminhões de entrega e de carros particulares. Na rua, a gente imaginava estar dentro do Maracanã, jogando, como craques, para multidões.


Ainda no Jacarezinho, no campo do Sapão, o goleiro Manga (que jogou no Botafogo e em outros grandes times) apareceu para jogar. Neste dia, o campo lotou. Cada defesa do Manga mais parecia um gol. Vibrávamos em deferência àquele atleta famoso, uma celebridade, que se dispôs a pisar no mesmo solo que brincávamos todas as tardes. No Sapão, volta e meia, o jogo era interrompido. Mesmo com o Manga, a bola caia no rio, que margeava o campo. O jogo parava até a redonda ser pescada e voltar a cumprir a sua função. Terra batida ou asfalto, eu estava lá.


No Sapão não foi só alegria. Vi, pela primeira vez, a morte acontecer de verdade. Do outro lado do rio, no Conjunto dos Ex-combatentes, um credor, sem dó, assassina um devedor. Corpo executado, a vida volta ao seu ritmo rotineiro e a bola a rolar. Essa imagem nunca mais saiu de mim. E a vida seguiu o seu curso.


Em 1977, saímos do Jacarezinho e fomos morar em Belford-Roxo, no bairro Jardim Bom Pastor. Lá era futebol de domingo a domingo. Nunca vi tantos jogadores geniais num lugar só. Filé, China, Tião Maluco, Guará, João Fabiano, Luiz Carlos, Planeta, Teguinha, Raimundinho, Sidney, Badu, Tosa e Grande. Tinha outros muito bons, mas esses que nomeei, sempre lamentei não os ver na TV ou no Maracanã jogando profissionalmente. Eram mágicos, malabaristas com a bola. Pobre dos desavisados que não os conhecia. Um chapéu, um ovinho, um elástico e gols de placa.  Os campos estavam sempre lotados.


Quem preferia deixar ao léu a programação da tarde de domingo da TV, se juntava para formar uma torcida diversa – homens, mulheres, crianças, jovens, adultos e velhos. De comum só mesmo a classe social e o gosto pelo futebol – Estrela Azul, Cairu, Costa Junior, Nova Esperança, Independente, Grande Rio, cada qual com a sua fiel torcida. Cada um desses times tinha o chamado segundo quadro, jogo das 14h às 16h, e o primeiro quadro, das 16h às 18h. Era a diversão que fechava o dia de folga. A tradição reserva ao primeiro quadro os melhores jogadores. Só que em Bom Pastor não funcionava assim. Havia craques nos dois quadros. E tinha aqueles que preferiam jogar no segundo para aproveitar o final de domingo para se distrair com sei lá o quê.


Em Bom Pastor vivi e vi bastante coisas. No futebol, uma passagem que não esqueço foi o gol de falta do meia-esquerda China, que jogava no Cairu. Formaram a barreira, o juiz autorizou, China bateu no ângulo, gol. O juiz anulou, não lembro o motivo, e mandou repetir a cobrança. Nova barreira feita por um goleiro mais precavido. Juiz autoriza, lá vai o China. Parecia replay do primeiro gol, só mudou um pouco o tamanho da barreira. Até hoje aguardo ver uma cena parecida, sem montagem, num jogo de futebol de onze contra onze, num campo de aproximadamente 110 metros de comprimento e 70 metros de largura. Não precisa estar gramado!


Em Bom Pastor assisti algumas Copas do Mundo de Futebol. Para os da minha geração, apaixonados por esse esporte, não tem como esquecer a seleção de 1982. Ainda mais com o advento do Instagram.  Mas, confesso, mais do que os lances de Zico, Junior, Sócrates e Falcão, me impressionou a crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada no dia seguinte, após a surpreendente derrota para a Itália. Perder, Ganhar e Viver publicada, em 7 de julho de 1982, no JB, é sublime.  


O futebol também vai para a memória alimentando a crença de que na vida o fraco pode ganhar do mais forte. Por desavenças banais, se formou um time ad hoc só para infernizar o juízo da diretoria do time do Cairu. O Misto foi formado para disputar o campeonato do bairro. Era o time mais desacreditado de J. Bom Pastor. O nosso time era uma mistura de jogadores ruins, medianos e poucos craques, mas com o melhor técnico do bairro (Gilberto, amante em dirigir caminhão e do futebol, que tinha deixado o Cairu).


O Cairu tinha como presidente o dono da padaria do bairro. O Misto, depois de uma campanha de dois turnos, foi para a final do campeonato contra o previsível finalista e campeão, Cairu. Para muita gente do bairro era a reedição bíblica do pugilato entre Davi e Golias. O jogo foi fora do bairro, no campo do Volante, na cidade de Mesquita, à época, distrito de Nova Iguaçu. Lá o campo era melhor e tinha arquibancada. Ônibus foram alugados e não faltou torcida para aquela decisão. Tudo deu certo para o cata-cata ad hoc naquela tarde de domingo, o Misto foi campeão. Passados alguns amistosos após aquele marcante campeonato, o time foi desfeito. Foi formado, no fundo, só para provocar o Cairu.


Foi em J. Bom Pastor, que embriagado, já bem adulto, “assisti” o Brasil ganhar da Itália, na decisão da Copa de 1994. Sinceramente essa foi quase igual a de 1970, não lembro de quase nada.


O futebol teceu boa parte das minhas memórias. Hoje, no lugar do Sapão tem uma escola, com o nome de quem, provavelmente, nunca pisou no Jacarezinho; em Jardim Bom Pastor, no lugar de campos de futebol, há conjuntos habitacionais, condomínios fechados; meus craques seguem uma vida comum, uns morreram, outros cuidam de netos e seguem a vida na viração; poucos patrões assinam carteira profissional de uma empregada doméstica e João Saldanha não viveu para ver, decepcionado, as logomarcas tomarem conta dos uniformes dos clubes profissionais; o Maracanã já foi reformado algumas vezes e a geral já não existe mais.


E assim seguimos a vida produzindo novas memórias.  


Edson Gargamel


 

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