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Ezequiel Delavie, o Homem Segundo Freud

Ezequiel Delavie

Meu pai era o próprio. Do âmago de um enorme ressentimento contra seu próprio pai, Ezequiel o idolatrava, tinha paixão por sua mãe (mas só inconscientemente incestuosa) e pensava que podia entender as mulheres através de padrões masculinos.


Com a fortuna de sua família, sua beleza dourada e sua impecável educação, temperada com o charme de suas aventuras boêmias tocando saxofone nos bares pela noite afora, embebedando-se e coexistindo com outros notívagos de questionável reputação, papai foi um dos melhores partidos no Rio de Janeiro, pertencendo, além de seus atributos pessoais, a uma das famílias mais tradicionais das primeiras décadas do século XX nessa cidade, a única de sobrenome Delavie durante mais de cem anos no Brasil.


O que foi crucial para a pessoa que papai se tornou e o modo com que nos afetou foi o fato de sua mãe Isabella nunca haver se recuperado de ter se tornado mãe; daqueles momentos em que expeliu de si mesma o que havia se tornado o cerne do seu corpo durante períodos de nove meses. Seus filhos foram postos no mundo, mas através de sua longa vida, ela se relacionou com eles como se não fossem mais do que extensões de si mesma. Cortando-a em dois, o parto sempre lhe marcou a ferro e fogo com a angústia da separação do que havia sido a melhor parte de seu ser, que a torturou pela vida toda sob a forma de um medo de perda compulsivo e mórbido.


Sua obsessão nos mais remotos e perigos que poderiam acometer seus filhos não só na rotina trivial como nas coisas glamorosas que planejavam, levavam sua alma mutilada a projetar sua própria dor no mundo que os roubara dela, e a pobre mulher só via ameaças em tudo que dizia respeito a eles. Se o mais velho ia viajar num cruzeiro, ela lhe dirigia frenéticas recomendações de não discutir com ninguém a bordo para que não o empurrassem ao mar. Se o mais moço não lhe telefonasse todos os dias, ela temia que ele tivesse afinal se suicidado pelo fato de ser casado com uma mulher de quem ela na verdade não gostava. Mesmo quando tudo corria bem, imagens repulsivas irrompiam em sua mente mostrando algum de seus filhos sob ameaça fatal, e ela tinha que exorcizá-la se imaginando no lugar daquele amado filho e o salvando aà custa de ter que suportar alguma tortura elaborada. Sua viívida imaginação não carecia de exemplos de todo tipo de flagelação da carne, mas sua mais horrível aflição era o medo de não ser capaz de tolerar nenhum daqueles sacrifícios na realidade, que atuava nela como uma zombaria cruel e cobradora no pano de fundo de seu fantasiado sofrimento.


A constância de sua penitência por tanto amor tinha que contar como pagamento em favor da divina proteção de sua ninhada, mas o amor é inflexível, os juros de seu preço nunca param de crescer e qualquer pensamento que passasse na cabeça de Isabella era impregnado do medo de ser roubada de seus filhos pela segunda vez, garantindo-lhe sem tréguas a dor imperdoável da maternidade. Até mesmo quando ela fazia algo simples como abrir uma gaveta ou uma porta, aquelas imagens terríveis assaltavam sua mente e a levavam a executar gestos estranhos e repetidos até conseguir içar do fundo de si mesma alguma imagem ensolarada e alegre relacionada ao filho que sua detestável imaginação lhe mostrara sob perigo.


Exausta com superstições e TOCs, Isabella ainda tinha energia para se visualizar toda noite, depois de rezar o terço, dando a vida por seus filhos sob tipos mais e mais terríveis de mortificação física. O amor, pacto com a eternidade, é o maior esquecimento da finitude ao mesmo tempo que um constante encarar a morte nos olhos.


Quando não havia razões para Isabella se sacrificar por amor aos seus, ela se sentia desmoralizada e tinha que se castigar, lembrando-se, especialmente em ocasiões festivas, da chegada iminente do seu próprio fim, ameaça que ela, simples mortal que era, não conseguira eliminar para ninguém com toda sua tenaz penitência. Enquanto sua obsessão em sua morte revelava o seu medo desta, sua afinidade com a dor ia para além da fantasia, e a devoção voraz que tinha por aqueles que considerava parte de sua carne, nascendo do seu sofrimento crônico dava a ela, como dor impulsionando mais dor, a coragem de fazer qualquer coisa por eles.


Quando papai era pequenino e teve difteria, não havia antibióticos e mais de um médico declarou que ele não se salvaria. Mas o amor de Isabella era mais poderoso do que antibióticos, do que ciência e do que probabilidades. Marcou seu coração com o inabalável juramento de salvar seu filhinho fosse como fosse. Essa mãe dedicada fez uma promessa de subir de joelhos os 365 degraus da escada da Penha em pleno verão, para que a virgem o salvasse. Papai se curou a despeito das prognoses médicas, mas sua mãe, mesmo que aliviada, quase teve que amputar suas pernas infeccionadas.


Na minha adolescência, percebi que papai nunca precisava esconder suas infidelidades matrimoniais de ninguém, e ainda se prosava para a família e pra quem quisesse ouvir, que o seu instinto sexual não era domesticável pelo casamento. Foi então que senti que nenhum de seus casos ameaçava mamãe tanto quanto a adoração que ele tinha por sua própria mãe. Além do período inebriante que Isabella o amamentou e além das promessas sofridas que cumpriu para salvar a sua vida mais de uma vez, aquela senhora apaixonada, sem querer, deu aos seus filhos quando adolescentes o bônus de vê-la curtindo sexo com vovô, quando cada um deles espionou pela fechadura da porta do quarto de seus sagrados pais.


Que descoberta! Papai ficou pasmo e ao mesmo tempo fascinado. A mistura de adorar aquela mãe antológica e o reconhecimento da atividade sexual que ela revelara- quando naqueles dias, a idade que Isabella já tinha e sua aparência matronal não faria ninguém imaginar que ela ainda transasse - foi um verdadeiro tour de force para papai: Somente sua mãe sobre humana podia ter o poder de reconciliar a santidade da maternidade com a lascívia do sexo. Acima dela na terra, só Deus no céu!


O que papai viu de tão gigantesco na visão microscópica através da fechadura de uma porta deu origem à exceção da teoria louca que ele já vinha formulando, inspirada no comportamento do gado e outros mamíferos, para justificar sua infidelidade matrimonial. Dizia que a espécie animal e humana, em favor de sua própria reprodução, quer que os machos cubram tantas fêmeas quanto possível, pois enquanto estas ficam a serviço da gravidez e amamentação, eles continuam a prestar seus serviços a muitas outras. Disso ele concluía que o prazer das fêmeas, que são regidas pelo “hormônio do amor materno” em suas palavras, se encontrava na maternidade, e o dos machos, no sexo. Desta feita, ele validava suas aventuras dizendo que estava simplesmente “servindo a espécie”.


Depois da revelação que Isabella lhe proporcionou, papai encontrou, na exceção que mencionei de sua teoria conveniente e egoísta, uma conclusão sagrada pois que mantinha a exclusividade de sua santa mãe e ao mesmo tempo justificava os caprichos de seu membro:

“O prazer das mulheres está na maternidade e o dos homens no sexo.


Quando uma mulher gosta de sexo ela é como um homem, não tem suficiente hormônio do amor maternal e não pode dar uma boa mãe.


Exceto a minha mãe!


Ela é a melhor mulher e a melhor mãe!”

 

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