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Foto do escritorLéo Viana

Expediente



Perdeu a hora e saiu correndo do apartamento. Missão importante para resolver no trabalho naquela sexta. Promessa feita ao chefe. Na portaria tropeçou, inadvertidamente, claro, num gato que dormia exatamente no primeiro degrau depois do portão. Parou pra acalmar o gato, que lhe deu um arranhão no braço, não sem motivo. Nada grave. Tinha gato em casa, um arranhão ou outro estavam sempre na ordem do dia. Na esquina, o pitbull, esse sim, era a novidade. Não temia o cachorro, já tivera desses e de outras raças com histórico de agressividade, mas jamais conhecera problemas com seus cães. Questão de sua própria índole. Os animais muito normalmente se adaptam aos donos. Mas na outra ponta da coleira do pitbull havia um fortão com cara de poucos amigos, que inclusive parecia transmitir ao cão a mesma aversão a outras pessoas. Sem focinheira e com uma longa correia presa à coleira, o animal (o menor), nem latiu. Mas avançou num salto, mirando o pescoço do Ademir, que se esquivou com um movimento quase ninja. O pitboy proprietário puxou a guarda e derrubou o cão com uma risadinha. Balbuciou qualquer coisa sobre cheiro de gato, que o cachorro não gostava. O Ademir não parou pra conversar e seguiu pro resto do dia. Não eram nem nove da manhã ainda.


Na rua em declive, pisou em qualquer coisa pastosa. A sola cheia de ranhuras do tênis de trekking não permitia limpeza rápida, do tipo que se faz no meio-fio. O cheiro subia forte. Numa leitura rápida do caminho a fazer, não lembrava de nenhum gramado ou fonte de água onde pudesse limpar o calçado. Os calçados. A fatalidade lhe atingira os dois pés.


Pensando em solução pro malcheiroso problema que tinha, distraiu-se novamente com o que mais ocorria à sua volta e deu um encontrão violento com um morador de rua que intencionava mesmo abordar o Ademir em busca de uma contribuição pro café da manhã. O coitado, cuja vida já lhe havia ceifado a perna esquerda, caiu em cima da muleta e por pouco não bateu a cabeça. Sentiu-se agredido e passou a xingar o distraído Ademir, que além de não ter dinheiro pra contribuir com a demanda do pobre pedinte, acabara de notar que esquecera em casa os cartões, incluindo os de bancos e transporte. O coitado em situação de rua já não aceitaria qualquer coisa do cara que quase acabara com sua vida. Ademir tencionava passar num caixa eletrônico pra retirar uns trocados. Voltar em casa atrasaria demais seus planos. Iria até o escritório andando. Não era tão longe. E ainda podia limpar os pés no caminho. Lembrou que conseguiria tirar dinheiro com a biometria, o que nem sempre dava certo porque tinha as digitais muito lisas, mas não custava tentar. E tentou. No posto, na farmácia, no mercado e numa agência do banco que ficava no meio do caminho até o escritório. Sem sucesso. Seguiu sem um centavo, “nada no bolso ou nas mãos”, como diria o Caetano.


Chegando ao escritório, numa transversal da rua das Laranjeiras, o cheiro do tênis ainda se manifestava. Se havia algum gramado no caminho, não percebeu. Centrava as preocupações na falta de dinheiro e nos eventos ruins que pareciam anunciar um dia repleto de contratempos.

A internet estava fora do ar e o cheiro parecia se alastrar. Malditas ranhuras do tênis que havia comprado pra fazer trilhas. Talvez no banheiro conseguisse ao menos lavar a sola do calçado. Para isso podia mesmo sacrificar a escova de dentes. Seria fácil comprar outra e um dia sem escovar os dentes podia ser grave, mas não tinha a perspectiva imediata de chegar a boca tão perto de alguém a ponto de sua higiene bucal interferir no contato. Ademais, não levaria a escova suja de merda à boca, ora. Deixaria de escovar os dentes por uma refeição. Não seria o fim do mundo.


E assim fez. No banheiro, sentou-se, vestido, num sanitário fechado. Manteve a porta aberta para garantir a iluminação e, cuidadosamente, retirou os excrementos remanescentes entre as ranhuras da sola de borracha. Terminado o serviço sujo, saiu do cubículo com a empáfia dos vitoriosos, o par de tênis em uma das mãos e a escova de dentes na outra. Diria qualquer coisa a si mesmo, provavelmente algum grito de guerra automotivacional, caso não escorregasse descalço no chão molhado e cheio de detergente. A turma da limpeza, que costumava chegar bem mais cedo, estava levemente atrasada naquele dia, o suficiente para coincidir com o infortúnio do Ademir.


Acordou na traumato-ortopedia do Miguel Couto. E foi lá que soube, pelo anestesista, que tinha batido com a cabeça. Essa, aliás ainda doía um pouco, mas não tanto que inviabilizasse a conversa. De acordo com o médico, um neurocirurgião já tinha feito os exames necessários e a dureza da caixa craniana do Ademir garantiu a integridade do que havia lá dentro. O mesmo não se pode dizer do joelho esquerdo, cujos ligamentos romperam e seriam objeto de cirurgia naquele momento, ou um pouco mais pra frente, assim que a anestesia geral fizesse efeito.

O retrospecto do dia, feito pelo Ademir segundos antes de receber a anestesia geral, num momento de lucidez emoldurado pelos aparelhos do hospital, não era comum. Ainda não tinha dado meio dia e ele já tinha percorrido um estranho caminho que levava do arranhão do gato ao centro cirúrgico. Apagou antes de tentar ligar os pontos.


Acordou faminto, com a perna imobilizada e tentando entender quem eram as pessoas que o observavam, entre condoídos e alegres. À medida que o efeito da anestesia foi passando, a visão clareando, os pensamentos se organizando, reconheceu a Renatinha, do financeiro; o Joel, do RH; a Monalisa, do almoxarifado e o Alaor, seu irmão mais novo.


Todos sorriam. Um pouco amarelo, mas sorriam.

Não conseguiu articular um agradecimento. A consciência e a percepção das coisas voltava aos poucos, mas ainda não conseguia vocalizar a gratidão que sentia pela manifestação de todos. Certamente tinham providenciado tudo para que ele pudesse ser atendido da melhor maneira, no tempo exato. E realmente tinha transcorrido assim. Uma lágrima furtiva desceu do olho esquerdo do Ademir com a constatação.


Viu ainda quando o chefe chegou e se juntou ao grupo, manifestando sua gratidão pelo empenho do Ademir ao longo de todos os anos em que trabalhava na agência de publicidade.

Só não tinha entendido o que ele tinha ido fazer no escritório em seu dia de folga. Tinha sim, uma missão combinada, mas era para a segunda seguinte. A folga na sexta tinha sido acertada com o Ademir e sua candidata a namorada, a Selminha, da produção, muito conhecida por seu pavio curto, mas que se encantara com o jeitão “distraído inteligente” dele.


Tudo o que se sabe é que ela chegou à casa do Ademir uns dez minutos depois de ele ter saído. O porteiro relata que ela não saiu contente de lá. Mas pediu um táxi direto pro aeroporto.

Há quem diga que ela teria até trocado a blusa vermelha que vestia, presente do Ademir, por uma camiseta da CBF.


Mas aí já é especulação.


Rio de Janeiro, outubro de 2022.


 

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