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Erudição



Mais de uma vez eu disse, sentado escrevendo ou em rodas de conversa fiada - ou séria - com amigos, que tive muita sorte na vida. Houve esforço, claro, mas certamente inferior ao que seria normal para a consecução dos objetivos. Se é que havia objetivos! Isso nunca ficou muito claro pra mim. Eu nunca tive um projeto determinado ou uma resposta direta para a fatídica o que você quer ser quando crescer?? . Entre os maiores problemas está talvez o fato de ter crescido antes que houvesse tempo de tomar uma decisão. Eu já chegava no metro e oitenta e ainda era um moleque sem definição nenhuma...


Aos dezoito entrei na universidade pra me tornar agrônomo, o que finalmente parecia uma meta. Foi. Tenho uma profissão interessante (apesar de ter também colegas de profissão insuportáveis e muitos deles responsáveis por grande parte da rentável catástrofe ecológica e sanitária que é o agro brasileiro! Gloriosamente, os meus amigos, mesmo os também agrônomos, não se enquadram nessa trupe...). Pois bem. Parecia tudo bem definido, mas ainda não seria.


Chora Cavaco, uma playlist de responsa: ouça na Spotify.


Os anos – muitos - que separaram a minha entrada na universidade da minha saída, com um diploma embaixo do braço, foram os mesmos anos que me aproximaram definitivamente da música e dessa mania de contar histórias, verídicas ou inventadas, em prosa escrita ou em versos cantados.


Nem é preciso dizer que, dado o perfil e as evidentes limitações intelectuais que sempre carreguei comigo (o que nunca me impediu de ler jornais em duas ou três línguas, gostar de boa música, ler muitos livros e conversar sobre a maioria dos assuntos disponíveis com um mínimo de informação a respeito), foi descartada a hipótese acadêmica. Seria um lamentável aluno de pós-graduação, como acabei sendo, num curso corporativo em que me enfiaram, por méritos que desconheço.

Os mesmos desconhecidos méritos que me aproximaram, por vias tortas e diversas, de gente muito inteligente, com a qual tenho o prazer do convívio há muitos anos.


São mestres e mestras, doutores e doutoras, inúmeros deles portadores dos títulos acadêmicos devidos, geralmente conquistados com louvor e recomendações, e que os habilitaram a dar expediente hoje nos maiores centros de pesquisa do país, nas grandes universidades, nas instâncias técnicas superiores dos poderes, na magistratura e em outros cantos mundo afora, além de mesas de botequins onde juntos rimos e cantamos muitas vezes ao longo da vida e seguimos fazendo isso, sempre que possível.


Os que não conquistaram títulos acadêmicos merecem doutorados honoris causa em temas diversos e sempre serão fonte de conhecimento relevante pra mim, tanto quanto os outros. Seja a obra de Nelson Cavaquinho ou Mauro Duarte, a mais eficiente forma de suprimento de fósforo no solo, a melhor feijoada da cidade, a literatura de Machado de Assis ou Fernando Pessoa, os projetos de controle de inundações no Rio de Janeiro, o melhor botequim do Centro da Cidade ou a importância da superação da pintura figurativa pelos impressionistas no final do século XIX, tenho o privilégio de ter ouvido e falado sobre temas assim, tão diversos, em diferentes momentos e lugares, mas normalmente escoltando uma cerveja gelada e/ou ouvindo um belo samba.



Café Musical, playlist no Youtube.


Esse introito autobiográfico quase pretensioso tem uma razão de ser. Pois bem. Dia desses, no final da função no botequim mais querido de Copacabana, um chato me abordou com o mais estranho pedido de socorro que eu já recebi. Queria, me parece, ser introduzido (opa! Deixa eu explicar!) a uma turma, provavelmente atraído pelas meninas bonitas que estavam ali. Me pedia que eu fosse uma espécie de “cupido social”. O pedido é esquisito, mas em botequim acontece de tudo. E, numa primeira olhada, nem me pareceu nada demais.


Só ficou ruim, estranho mesmo, quando, antes que eu perguntasse qualquer coisa, ele desandou a dizer – e exatamente com essas palavras - que era “muito culto” e isso podia atrapalhar as coisas. Ficou imediatamente claro que era um mala. Como também sei ser chato, perguntei qual era a formação dele. Entre frases empoladas, que com excesso de álcool tendem a se tornar ininteligíveis, ele me disse que os pais eram da magistratura e do oficialato superior de alguma força e que morava em um bairro nobre próximo. E que tinha, ele mesmo, formação militar também.


Música de pretos...ouça na Spotify.



Coitado. Obviamente desconhecia o fato de que ali mesmo, no botequim onde ele tentava vender alguma erudição como qualidade, muitos detêm títulos acadêmicos diversos ou conhecimento igualmente respeitável, que constitui cultura da mais alta estirpe, sem qualquer necessidade de exposição pública disso ou sem que isso seja determinante para o maior ou menor reconhecimento por parte de quem se aproxima. A maior qualidade dos detentores de qualquer saber está exatamente na capacidade de se relacionar com os demais mortais em pé de igualdade, sem a empáfia do saber aparente, a arrogância que arruína qualquer sapiência, por maior que seja.


Obviamente desconversei e sugeri que utilizasse seus próprios meios para atingir seu objetivo. E saí, rindo sozinho e me orgulhando ainda mais dos meus amigos, que me fazem melhor a cada dia com o conhecimento que têm e que volta e meia, sem qualquer afetação, aceitam dividir comigo.


O último militar a quem vi se atribuir alguma erudição chamava-se Charles de Gaulle, que mesmo com todos os defeitos que todo militar tem, foi suficientemente inteligente para renunciar após o maio de 68.

Cá comigo eu sigo considerando “militar culto” um oximoro! Ele que pesquise o que é isso.

E tenho dito!


Rio, abril de 2022.


 

Roda de Samba.



 

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