DERREPENGUENTE...
Dois dos melhores momentos da música brasileira (entre tantos outros, claro), giram no entorno de uma única canção, o samba de breque quase primordial “Acertei no Milhar”, que já nasceu nobre no papel, porque é da lavra da dupla acima de qualquer classificação possível Wilson Batista/Geraldo Pereira. Pois bem. A gravação do Moreira da Silva em 1940 é um marco no gênero. E a regravação do Jorge Veiga, de 1959, é igualmente sensacional. Mas não é o caso de discutir a qualidade das gravações, que não se perpetuaram à toa.
Nosso caso aqui é o tema. Numa pesquisa rápida de Google, descobri que muita gente já discutiu, com o devido rigor científico, o lugar da malandragem no samba carioca dos anos 30-40-50, desde o malandro “anti-trabalho”, até o que, tolhido pelo Estado Novo, trabalhava, mas com saudades de tempos menos “duros”. Em comum, o sonho com dias melhores, tempos esses exemplarmente representados na canção. O malandro sonha ter ganho quinhentos contos no jogo do bicho e resolvido a vida de vez. Os filhos no colégio interno, a patroa se “afrancesando”, com professor e tudo, eles passeando pela América do Sul num avião azul e morando num hotel chique.
A moldura das vozes icônicas de Moreira e Jorge Veiga deram o tom certo à obra. Escutá-las é um prazer sempre, garantia de riso solto e felicidade certa por pelo menos três ou quatro minutos.
MPB porreta aqui!
O bicho só pega quando, por força do hábito, a gente resolve estabelecer paralelo com a realidade objetiva, aquela que a gente conhece mesmo. Sonhar é livre, ainda bem! E sonhamos todos. Muito! Parecia que tínhamos todos acertado no milhar, quando, mais ou menos entre 2003 e 2015, lotamos os aeroportos, aprendemos a falar francês, trocamos móveis e eletrodomésticos, compramos telefones celulares dos melhores, comemos a melhor carne, a melhor massa, os melhores molhos, bebemos o melhor vinho, nos habituamos às boas cervejas, viajamos pelo Brasil, pela América do Sul e por boa parte do mundo, pusemos nossos filhos nas melhores escolas públicas ou privadas, vimos a fome deixar de ser uma de nossas grandes mazelas. Era um sonho lindo. Vi professores felizes com as turmas cheias e interessadas (havia alguns tristes, verdade, mas eram francamente minoritários), vi as universidades fervilhando de ideias novas e diferentes, vi a economia bombando de forma inédita, mercados cheios e ruas de comércio tomadas por quem nem sempre as frequentava em condições normais.
Mas era um sonho que podia sofrer interferências externas, como aquela do despertador antigo, com alarme externo, duas campânulas atingidas alternadamente por um martelinho de metal, que emite um dos sons mais assustadores de que se tem notícia. Muito especialmente antes do nascer do sol.
Assim como o despertadorzinho (o meu era azul, de triste e malfadada memória), que parecia saber qual o pior momento pra tocar, o que equivalia – obviamente – à melhor parte do sonho, ao ápice de alguma conquista só possível ali, de olhos fechados e cabeça no travesseiro, havia quem soubesse a hora certa de jogar um balde de água em toda aquela gente sonhadora que, por momentos historicamente curtos, mas longos como sensação pessoal, estava aproveitando o que vida insistia em negar por tanto tempo. Quem não comia estava comendo, quem não tinha emprego tinha conseguido um, quem não acreditava poder viajar estava tirando o atraso e muitos dos que não tinham onde morar estavam se alojando. E isso, já se disse muito, incomodava a quem não tinha os mesmos problemas.
O problema nem estava numa espécie de “concorrência”, visto que nenhum dos pobres momentaneamente incorporados à economia de mercado “competia” com os ricos por produtos ou serviços. Os médicos e dentistas que atendem aos mais ricos, via de regra, não atendem aos planos populares. Pobre também não voava de primeira classe ou executiva, que tem fila separada. Rico não frequenta a 25 de Março ou a Rua da Alfandega. Muita gente abriu conta em banco, mas rico é Prime, Unique, Personalité. A galera que acessou o banco pela primeira vez tem continha poupança ou aquele cartãozinho azul do bolsa-família, que dá direito a uma vaga na fila na chuva ou sol, não tem um gerente pra cada um.
Mas incomodou. E – teimo em repetir – não foi pela concorrência. Foi por um sentimento muito menor, mas também muito forte. Há quem chame de egoísmo, pode ser inveja, pode ser uma combinação dos dois. Para uma parte da classe média e para a quase totalidade dos ricos, os pobres não devem nem se atrever a sonhar com o que para eles, os de mais posses, já é corriqueiro. Em Paris ou Lisboa, cheias de novos viajantes brazucas, os ricos não frequentam os mesmos bistrôs ou tascas que os pobres e nem se hospedam nos mesmos hotéis. Mas a sensação de ver a periferia – ou de sentir a periferia – por perto mexe com o sangue azul.
Mário Lago playlist, com grandes nomes. Escuta aqui.
O fato é que o despertador tocou na melhor parte do sonho, jogaram aquele balde de água fria, puxaram o cobertor. Dava tranquilamente pra se dormir um pouco mais.
No tempo da universidade, morei com um colega que tinha um daqueles despertadores de sininho, de que eu já falei aí em cima, no texto. Num dia especialmente frio, sem aulas cedo, provas, nada que justificasse sair da cama antes do sol raiar, o cara esqueceu o despertador programado. Quando aquela bomba sonora tocou, foi a hora da vingança: sem olhar pro lado e só colocando a mão e o antebraço pra fora da coberta, atirou o despertador contra a parede com toda a energia e todo o ódio acumulados pelas inúmeras vezes em que algum sonho era interrompido por ele. O relógio fazia o papel que a Etelvina faz na canção, chamando à realidade, a contragosto de quem sonha.
O nosso caso é bem mais grave.
Derrepenguente, como cantaram Moreira e Jorge Veiga, tá na hora de a gente jogar o despertador na parede. Afinal, nem era sonho e dava pra continuar dormindo ( e trabalhando, comendo, viajando, estudando, vivendo bem) por muito tempo, não fossem os maus sentimentos de uma elite que detesta a felicidade dos outros.
Rio de Janeiro, outubro de 2021.
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