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CASAL



Saida do cinema. Filme sueco, muitas cenas em Estocolmo, cidade da qual ela guardava lembranças terríveis. Invernos pavorosamente frios, noites terrivelmente longas, verão curtíssimo e gente muito pouco sociável, ao menos para as suas lembranças de criança brasileira, ainda que nascida lá.


Mas ele tinha feito o melhor que poderia. Passado algum tempo do match no aplicativo de relacionamento, a conversa tinha evoluído, mas não ainda para um nível de refinamento que excluísse a Suécia do cinema europeu, que ela disse admirar, assim como o africano e o asiático. Ela falou em “cinema não hegemônico”. Ele pediu explicação. Ela explicou que era “cinema não hollywoodiano”. Ele entendeu, mas perguntou se o brasileiro estava incluído. Ela disse que não gostava de comédias fáceis com artistas da tv. Ele pareceu entender. Sugeriu o festival europeu de um cinema da Zona Sul, mas no horário combinado passava um filme sueco. Ela assentiu sem problematizar, mas sabia que não sairia contente do cinema. Não gostava das lembranças da Suécia e, pior, falava sueco com fluência.


Foi lá que nasceu e estudou até a adolescência.


Não tinha como dizer isso a ele. Do alto de sua ignorância dos sentimentos dela, ele parecia contente com o filme, que lhe abrira um novo olhar. Normalmente assistia a blockbusters de Hollywood, filmes de ação e heróis, mas não era um aficionado. Entendia cinema como entretenimento simples. Mesmo a filosofia rasteira dos filmes da Marvel passava desapercebida a ele. Não imaginava as grandes questões geralmente levantadas pelo cinema de autor, cheio de entrelinhas e subjetividades. As crises pessoais de Batman e Homem Aranha eram questões absolutamente menores frente aos feitos heróicos, incêndios, vilões mirabolantes e perseguições aéreas ou terrestres. Pra entreter, era isso o que lhe interessava.


Ela tinha gostado dele e de sua simplicidade de raciocínio. Não era um iletrado. O doutorado em Matemática o qualificava entre poucos na sociedade brasileira, desigual e geralmente pouco instruída. Mas também não era um intelectual, com aprofundada leitura em ciências sociais e filosofia. A origem humilde não foi um limitante pra seus anseios acadêmicos, de modo que acabou levando a intimidade com os números às últimas consequências ao longo da vida, mesmo sem ser um grande amante das letras. Ela, ao contrário, mesmo não sendo estranha aos números – foi aluna de destaque em exatas no equivalente sueco ao nível médio – preferiu o estudo da ciência política. Veio da Suécia aos 16 e aos 25 terminou o mestrado numa grande universidade federal no Rio de Janeiro. Antes dos 30 tinha o doutorado e um emprego no Itamaraty.


O domínio de línguas estrangeiras foi um trunfo, mas ela era muito acima da média. Se mantivera distante dos homens porque não nutria boas expectativas em relação a eles. Conhecê -lo foi uma surpresa positiva. Bem empregado num centro de pesquisa, simpático, bonito até, jovem como ela e solitário, pelo que deu pra entender desde os primeiros contatos virtuais. Com o tempo, uma estranha percepção adquirida fez com que ela raramente errasse nos encontros via aplicativo. Não sabia exatamente o que era, mas o fato é que descartava facilmente os interessados em uma noite de luxúria ou com a conversa rasa demais. A dele não foi profunda, mas a intuição falou alto e ela bancou a aposta. Agora saíam do cinema, ele contente e ela meio decepcionada. Mas nada que impedisse a continuidade da aproximação.


Ela aceitou o chope que ele sugeriu. Mas não queria os bares lotados de Botafogo. Rumaram pro Capela, na Lapa, sempre meio vazio. Ainda não eram dez da noite. No carro do aplicativo a conversa fluiu melhor que o esperado, após o filme soturno. As cenas de gelo e neve, dramas psicológicos e depressão, típicas do cinema sueco, não atrapalhariam a noite, que prometia. Falaram de amenidades, de verões quentes, pra contrabalançar. Ambos eram amantes do calor. Mesmo o mais desconfortável dos verões cariocas era melhor que o frio sueco, concordaram.


Não se tocaram até chegarem ao restaurante. A cada um isso soava diferente. Mesmo do alto de suas altas capacidades cognitivas, ambos pensavam instintivamente. Ele, imaginando algum grau de rejeição por parte dela e ela dividida entre apostar na falta de iniciativa ou em algum tipo de respeito meio caipira. Na chegada, ele desceu, por um lado, deu a volta e abriu a porta pra ela. Gostei!, ela pensou.


A Lapa cheia era desestimulante para conversas, mas o Capela meio vazio, como previsto, era uma espécie de oásis.


Os três primeiros chopes animaram a conversa e estimularam o contato visual intenso, que avançou pra um contato físico. O primeiro beijo já foi engordurado por uma portentosa refeição de cabrito com arroz de brócolis. Nem fez diferença a grande quantidade de alho, que normalmente desestimula beijos.


Ele falou da família, do conservadorismo dos pais, do sitiozinho que mantinham na Serra e do fato de ter saído de lá pra estudar e ficado na cidade, envolvido pra sempre com os números que amava. Ela falou dos pais exilados, já velhos, que voltaram só bem depois da anistia. Ela mesmo já nasceu depois da anistia. Os pais lecionavam, ambos, na universidade, integrando um importante grupo de brasilianistas do norte da Europa. Curiosamente, ela cresceu falando mais português que sueco, dada a inserção dos pais no tal grupo, que fazia questão de se comunicar na língua do Brasil.


Com a bebida subindo à cabeça, a conversa começou a perder coerência.

Ele se confundiu várias vezes sobre o tema de seus estudos, que versavam sobre estatísticas usadas pra definir padrões de rendimento de investimentos.

Ela teve dificuldades, depois de uma caipirinha saideira, para explicar a ele o que exatamente fazia no Itamaraty.


Saíram cambaleantes para um motel na velha Lapa.


A noite não foi exatamente o previsto. As misturas gastro-etílicas levaram a dores de cabeça e outras consequências mais visiveis, incluindo uma terrível – e facilmente compreensível -queda na libido, motivo de preocupação de ambos, tão animados nos primeiros chopes.

O amanhecer dramático, entre ânsias de vômito e a busca desesperada por analgésicos, levou às confissões.


Ela jamais tinha ido à Suécia. Nasceu no hospital de Campo Grande e o máximo de Europa que conhecia eram as avenidas e ruas no entorno da Praça das Nações, em Bonsucesso. Trabalhava no atendimento de uma locadora de veículos, perto do Santos Dumont, mas nem falava inglês. Repassava para outros atendentes qualquer demanda de clientes estrangeiros.


Ele vinha mesmo do interior. Mas o máximo a que chegou na escola foi a conclusão do curso técnico de contabilidade, que lhe valeu o emprego de caixa num banco. Vivia a expectativa da dispensa. Caixas de banco estão em extinção.


Criaram personagens pra conseguir sexo casual gratuito no aplicativo. Acharam-se por acaso.

Gostaram-se.

Preferem praia a cinema.

Cancelaram os perfis e alugaram um conjugado na Lapa.

Vez ou outra vão ao Capela. É perto, prático.

Só bebem menos. É caro e pode levar a revelações.


Acham que tá bom assim.

 

Rio de Janeiro, fevereiro de 2024.

 

 

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