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Foto do escritorLéo Viana

Carta sem intimidade



Rio de Janeiro, manhã de domingo, março de 2022


Opa!! Tudo bem com você?


Aqui segue tudo sem grandes novidades. Nos últimos anos, muita coisa deu ruim, mas a gente segue. Como diz o Chico, “tem muito samba, muito choro e Rock’n’roll”. Sem isso “ninguém segura esse rojão”.


Tanto tempo sem escrever cartas... Talvez desde o fim da adolescência ou início da universidade, quando se escrevia para as namoradas que moravam longe ou pros amigos que foram estudar fora ou viver, levados pelos pais, em locais que ficavam além do raio de alcance da pelada, da rodinha de violão, do rolezinho de fim de tarde ou de outras atividades agregadoras, em tempos sem celular e - no meu caso - sem telefone fixo também.


De uns tempos pra cá, nos falamos como se estivéssemos sempre ao lado das pessoas. Ninguém, em lugar nenhum do mundo, está a distância não facilmente alcançável por dois toques na tela de um smartphone. A tecnologia nos uniu definitivamente. E nos desuniu pra sempre.


Obviamente, sob o filtro da tecnologia, é mais emocionante e prazeroso falar com quem está longe do que com quem está perto. É possível falar com quem se conhece e com quem não se conhece. É possível falar, coisa que a televisão, nosso contato anterior com o que acontecia à distância em tempo quase real, não nos permitia. Era via de mão única.


Falar – e ouvir - nos permite tomar decisões, opinar. E em 2022 vamos opinar de novo. E só o faremos porque muita gente defendeu o direito à opinião, tendo inclusive sido calado por isso, paradoxalmente. Lembro de mim, garoto, no comício das diretas, matando aula, com meu amigo Silvio Guedes, num ponto da Presidente Vargas, já no fim da ditadura. Talvez o dia mais importante da minha vida até ali. Aquele dia de aulas não vistas valeu mais que muitos outros, de aulas assistidas e não necessariamente interessantes ou úteis.


Daqui a poucos meses sairemos pra opinar. A minha opinião se baseia no meu conjunto de crenças e valores. Ela foi construída nos últimos 50 anos com base na observação e nas experiências. Ela foi construída com base nos espaços que frequentei e de cuja vida participei ativamente. Igreja, associação de moradores, escola (primária, secundária e universidades), escola de samba, grupos de música. Ela considera a solidariedade um valor fundamental. Ela considera cada pessoa responsável por si e pelos outros à sua volta. Ela se baseia em coisas relativamente abstratas, como amor, respeito e empatia, que geram ações concretas em diversos níveis. Ela não me permite, nem por um lapso ínfimo de tempo, pensar em tirar proveito da fragilidade de quem sofre. Ela não me permite, nem em sonho, achar normal a exploração humana, a desigualdade, a miséria.


Eu não sou um empreendedor strictu sensu. Nunca tive pretensões empresariais. Não sei vender nada. Você lembra, né? Mas respeito quem tem essa aptidão. Sou um servidor público concursado. Faço o meu trabalho corretamente e gosto de receber um contracheque no fim do mês. Opções. Opiniões.


Vou opinar considerando fundamental o direito à opinião. Vou opinar considerando que mesmo discordando visceralmente de você, posso te ouvir (ainda que à distância, com a tecnologia, blá, blá, blá), desde que você diga a verdade. Mentiras eu evito escutar, evito ler, não repasso, apago. Tenha a origem que tiver. Só espero de todos o mesmo.


E espero que você pense que, se alguém que pensa diferente de você - e provavelmente igual ou parecido comigo - morrer por conta de sua opinião, eu deixo imediatamente de respeitar você e passo a considerar você um assassino. Não sou importante a ponto de você se importar com isso. Mas pense. Seremos muitos.


Um beijo e boa manifestação de opinião.

Ainda faltam alguns meses.

Dá tempo de refletir.


Leo.


PS.: Não parece uma carta, né? Perdi a mão. A gente se fala com mais calma outra hora. Manda o WhatsApp. Perdi o teu telefone, mas ainda tinha o endereço. Escrevi aqui no computador porque a minha caligrafia tá cada vez pior. Nem eu entendo o que escrevi. Depois passamos esses anos em revista. Tem notícia do pessoal? Sabe quem casou, quem separou, quem morreu?


Fique bem.


 

O assunto musical é a desigualdade


 

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