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CARA AMARRADA



O Leleco pegou cinco anos. Tinha fama de mau porque pouco ria, desde garoto. Sempre foi assim. Quando atrasou a pensão dos dois filhos que tinha com a Bia, colega de infância na favela, só o fez porque tinha perdido o emprego na construtora em que era auxiliar de pedreiro. E foi só por antipatia que perdeu o trampo. Mas não houve jeito. Sem dinheiro, não tinha como pagar pensão.


Antipático, não tinha como convencer a Bia, cujo arrependimento com o casamento remontava à festa, ainda no salão da igreja do bairro. Na inércia, ela resistiu alguns anos casada com ele, esforçou-se o quanto pôde, mas ao se ver isolada de família e amigos pela difícil socialização do marido, fez as malas e levou embora o casal de crianças. Ele também não reagiu. Manteve a indiferença sisuda que todos conheciam. Não era violento, reativo, agressor. Era apenas mau humorado,  sem empatia. Não ria nunca, jamais relaxava. A Bia não aguentou e o mestre de obras também não.


Na cadeia, onde entrou sem reclamar mas, claro, sem esboçar qualquer simpatia por nenhum dos companheiros de cela, acabou elevado rapidamente à chefia. Não ganhou no grito, pois sempre foi de poucas palavras. A cara de mau foi fundamental, apesar do pouco – ou nenhum – espírito de liderança.


Era basicamente um pobre honesto e até  bem intencionado, mas cujos senso de humor e alteridade nunca se desenvolveram. Acabou indo bem na função. Não sofreu assédio sexual, não bebeu, não fumou, não liderou rebelião e ainda saiu por bom comportamento, sem esboçar riso algum.


Para surpresa inclusive de si mesmo, o respeito adquirido pela cara de poucos amigos foi importante na condução das coisas. Dos cinco anos passados na tranca, passou quatro e meio como único interlocutor da cela com a chefia. As poucas palavras que deixava escapar entre os dentes eram assertivas o suficiente para que fosse aceito e admirado pelas diferentes facções e pela direção da cadeia. Ninguém o incomodava no banho de sol. A cara fechada e a veia saltada na testa eram repelentes naturais de problemas alheios. Quando muito, um outro detento escolhido pelos companheiros de cela deixava perto dele, no nicho onde dormia, uma lista de demandas a ser negociada com os carcereiros.


Mas o fato é que saiu. E após longos cinco anos que em nada abalaram seu comportamento, estava de volta à liberdade, preso apenas à sisudez, para a qual não havia antídoto conhecido.

Forte como um hipopótamo, único paralelismo possível com o animal mais violento da África, passou a tentar emprego de segurança. Foi sumariamente descartado como vigia de shopping ou outras atividades, na mesma área, que envolvessem o contato com o público. A sensibilidade de uma pedra e aquela quase paralisia facial no modo “raiva de todos” foram imediatamente anotadas pelos recrutadores, que operam em linha e fecharam a maioria das possibilidades. Os psicólogos, no entanto, não notaram traços de psicopatia e recomendaram atividades solitárias. Era antissocial, não perigoso. Virou vigia da noite em galpões afastados de tudo. Sua função era acionar os mecanismos de alarme em caso de ameaça. Desarmado e solitário, não poderia haver melhor emprego, entendeu. Sua única companhia eram eventuais gatos ou cachorros abandonados na região e que, desavisados, aproximavam-se despretensiosamente. Não eram afastados nem acolhidos. Normalmente desistiam diante da falta de carinho.


A Bia não voltou a procurar o ex. Dos filhos, não tinha notícia. O coração petrificado do Leleco não dava falta de nada. Comia o necessário. A compleição física era naturalmente favorável, não derivava de atividade física sistemática. O trabalho sempre braçal certamente ajudava, mas era uma via de mão dupla. Fazia trabalho braçal porque era forte ou era forte porque fazia trabalho braçal? Talvez não houvesse resposta objetiva. Pela primeira vez tinha uma atividade que não demandava esforço físico. Estranhava, mas podia se tratar de uma compensação do destino pela cadeia e pelo tanto de portas que o próprio comportamento lhe tinha fechado ao longo do tempo. Em sua consciência pouco desenvolvida, esse raciocínio pareceu uma fraqueza. E fraqueza não constava do seu limitado cardápio emocional. Melhor parar com isso!

Após um ano de solidão no galpão e no cafofo da favela onde voltara a viver, uma sensação de abandono começou a se manifestar. No início, desacostumado a esse tipo de emoção, não identificou o motivo da tristeza. Tinha cara de bravo, não de triste. 


Comprou um rádio. Nunca se animou a ouvir música e achava a zoada insuportável, mas ouvir a voz humana poderia ser um alento. Não gostava de futebol e só restavam notícias e cultos. Ficou com as notícias.


A cara sempre amarrada não relaxou e pareceu se amarrar ainda mais com a repetição constante das informações e com a qualidade delas, variando sempre entre política e violência. Uma guerra aqui e outra ali, um político meio doido aqui e outro ali.


Quase quebrou o rádio por achar que ele não estava ajudando como deveria.

Até que uma notícia lhe fez prestar um pouco mais de atenção. Não entendeu direito, nunca foi de entender tudo, mas parecia ter ouvido algo sobre um esconderijo, uma tentativa de esconderijo, coisa assim. Teve que ouvir outras vezes até entender que o personagem envolvido tinha fama de valentão, como ele. Leleco nunca se escondera de nada, foi mansamente conduzido à cadeia e permaneceu lá por cinco longos anos por entender que o justo era o justo, mesmo que não fosse a vontade dele.


 Pela primeira vez, desde que se entendia por gente, parecia achar graça da situação. Ouviu outras dezenas de vezes. O “valentão” tinha se escondido numa embaixada para evitar que fosse preso, mesmo havendo, contra ele, uma quantidade grande de acusações provadas. Leleco não resistiu mais. Em pouco tempo soltou a primeira gargalhada, que deve ter reverberado nos bairros próximos. Na favela, trocou palavras com os vizinhos, já com as feições desarmadas. Muita gente estranhou, mas a notícia correu logo e foi positiva. Leleco agora era um homem bom. Nunca tinha sido exatamente mau, mas a cara nunca ajudou.


Procurou os filhos, ri de tudo, brinca com as crianças, ouve música, melhorou de emprego, prometeu distribuir doces no dia de Cosme e Damião.


Toda vez que ouve a palavra “Hungria”, solta uma gargalhada que faz a favela toda rir junto.

O valentão fujão, ao que consta, nunca tinha feito nada de bom. Mas, numa trapalhada, dentre tantas, salvou, sem querer, a vida do Leleco.

Leleco até reconhece, mas não vota em covarde!


E segue feliz da vida. Finalmente!!

 

Rio de Janeiro, março de 2024.


 

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