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ATLAS



Ele tinha tomado duas decisões na vida. Não se casar de novo e não ter que conviver outra vez com adolescentes e gatos. Gatos são, pra ele, adolescentes mimados de quatro patas e que soltam pelos. De maneira geral adorava pessoas e animais, amava as mulheres, traiu e foi traído em relacionamentos sem que isso fosse a razão para rompimentos, sempre pacíficos. Até que conheceu a Fábia. Linda, olhos verdes e pele morena, combinação que mexia demais com os nervos do Atlas. Muitas vezes pensava não perdoar os pais pelo nome que carregava, mas no fundo gostava. Tinha a sensação de carregar mesmo o mundo nas costas, que nem eram tão largas assim.


Mas falávamos da Fábia. A morena surgiu por acaso no escritório de arquitetura onde o Atlas dava expediente. Ele tinha sido do serviço público, mas nascera pra fazer projetos e sofreu afundando na burocracia. Demitiu-se e recomeçou a vida como arquiteto no escritório de um colega de faculdade. Especializou-se em grandes reformas residenciais. Era reformando moradias luxuosas dos ricos que tirava o sustento do projeto de habitação popular, que mantinha com amigos desde a faculdade. Já tinham entregue mais de 100 unidades completamente legalizadas e fora de áreas de risco a famílias escanteadas por projetos oficiais. Acreditava muito nisso, tinha como uma missão. Seguia sua vida de classe média baixa, sem luxos, mas mimando os ricos pra satisfazer os sonhos dos mais pobres. O ser humano é um poço de idiossincrasias mesmo. Um dia a morena apareceu demandando uma modificação geral na cobertura em Ipanema. Sentada à frente do Atlas para uma primeira conversa, hipnotizou o coitado enquanto descrevia o apartamento, coisa de quatrocentos metros quadrados no posto 9. A roupa discreta não revelava nada, mas a mente do arquiteto o traía o tempo todo imaginando coisas, enquanto rabiscava um briefing básico para elaborar o projeto, pensar o orçamento, etc.


Fábia não era apenas um rostinho bonito coroando um corpo escultural. Tinha sido CEO de uma grande editora europeia e após deixar o cargo e por pressão do grupo empresarial que comprou a companhia e obrigada a uma quarentena de seis meses, decidiu voltar para o Brasil e recomeçar a vida, longe da loucura da vida corporativa. Da bolada que ganhou na rescisão, ao invés de grandes investimentos financeiros ou empresariais, gastou parte para comprar a cobertura na praia de Ipanema, que frequentava quando criança, após longas jornadas de ônibus, vindo do subúrbio.


A história, já muito interessante, tinha ainda um complemento: a morena tinha ficado viúva recentemente de um milionário herdeiro inglês, aparentado dos Windsor. Do casamento, além de uma certa tristeza, trouxe consigo o filho, Edward, de 14 anos e incontáveis milhões na conta. O mal súbito que vitimou o marido era recorrente na família, que vivia sob a sombra da morte iminente. Viviam eles - por isso - intensamente, a ponto de tornar quase insuportável a vida de cônjuges ou agregados. Fábia aguentou pacientemente inúmeras ausências do marido enquanto ele subia o Everest, atravessava o Saara ou descia o Rio Meckong.


Criou praticamente sozinha o filho, que apesar da contínua falta do pai, valorizava demais o parentesco com a família real e os rapapés da monarquia, vistos quando brincava com os filhos dos nobres ou nas raras festas para as quais a família era convidada. Fábia, ao contrário, não se sentia bem junto à realeza. Gostava de ter sua própria vida e valorizava muito o fato de ter ascendido na companhia em que iniciou a carreira como secretária. Estudiosa, tinha já um MBA em gestão quando ingressou. Passou pelo marketing, pela edição, pela assistência à diretoria, fez um doutorado em Oxford e, sem que jamais sonhasse com isso, foi convidada pelo então presidente da empresa para assumir a direção geral aos 30 anos, num programa de renovação. Em um evento institucional foi seduzida pelo playboy bonitão que só depois revelou seus segredos, tanto no que se referia à família quanto aos esportes radicais e à morte sempre iminente. Mas não foi infeliz. Um amor conformado.


Atlas ouviu a história embevecido. Apesar da distração, caprichou no projeto, acompanhou a obra e, encurtando o enredo, envolveu-se com a linda e rica mãe do teen Ed.

Ela era simples e amiga. Rapidamente adaptou-se aos amigos do Atlas, passou a frequentar os mesmos bares e restaurantes, não demostrava nenhuma afetação, nenhum resquício de quem já tinha frequentado os salões da alta nobreza britânica. Da infância e adolescência no Rio, trazia ainda até algum samba no pé, a paixão pela Mangueira e pelo Flamengo. Só sofreu um pouco com as gírias novas da lingua portuguesa, mas nada que não dominasse logo.


O primeiro entrevero de Atlas com o adolescente veio numa ligação, alta madrugada. A mãe, excepcionalmente, adormecera no apartamento de sala e quarto em que ele vivia, em Botafogo, após uma festa. O moleque, em inglês britânico, chamava pela mãe e acusava o Atlas de sequestro. O arquiteto, do alto de seu curso Fisk incompleto, tentava explicar que não era nada disso. Ela apenas tinha bebido um pouco mais que o recomendado e ele mesmo não queria ir dormir em Ipanema, exatamente para não parecer intrometido ou aproveitador. Mas só se dispôs a despertá-la quando o inglesinho ameaçou chamar a polícia. Ouviu poucas e boas dela. Bêbados são imprevisíveis se acordados subitamente. Passou-lhe o fone e viu sua expressão mudar estranhamente quando a ouviu pronunciar “the cat”. Não entendeu o restante da conversa, provavelmente recheada de expressões só utilizadas por mães e filhos adolescentes, mas o assunto do gato ficou claro. O animal, que ele nem sabia que existia, parecia estar azucrinando a vida de Ed, que por isso suplicava pela volta da mãe.


Fábia se vestiu atabalhoadamente e começou a tentar pedir um carro de aplicativo, sob o peso quase insuportável de muito álcool e festa. Já não fazia estripulias assim havia muitos anos. Deu um beijo no Atlas e saiu correndo porta afora, recusando o seu oferecimento para acompanhá-la ao menos até a portaria.


Foram dois dias de silêncio até que ela ligou. Pediu um perdão comovente e convidou o Atlas para um almoço tranquilo, em casa. Ela faria seu prato mais especial, dispensaria os empregados. Ed tinha ido a uma excursão da escola e teriam uma tarde romântica no palácio elevado de Ipanema.


Atlas relutou, mas aceitou. Se organizou no escritório, deu conta dos projetos que tocava, retocou o perfume, vestiu-se direitinho e partiu. Foi recebido como nunca dantes. A Fábia caprichou no figurino sóbrio, mas provocante; o cenário era lindo, a comida estava sensacional e o vinho francês fazia a moldura perfeita. Após, entraram no quarto já bailando um tango de Gardel, Atlas repassando mentalmente os detalhes do projeto do apartamento, que conhecia de cor. Estavam nas preliminares quando Atlas sentiu a espetada forte na panturrilha. Ao se virar soltando o grito de dor, deu de cara com o angorá enorme que lhe encarava sem medo. Fábia, também assustada com o grito, dividiu-se entre acudir ao Atlas, que sangrava, ou ao gato, arremessado ao chão pelo namorado. No mesmo momento, o telefone de Fábia toca estridentemente e ela corre pra atender. Era Ed, pedindo, desesperado, que ela fosse buscá-lo no sítio em Paraty, onde ele estava sendo devorado por mosquitos e sofrendo bullying dos brasileirinhos ricos que estudavam com ele na escola bilíngue. Fábia deixou o gato preso num quarto, fez um curativo no furo ensanguentado na perna do Atlas e partiu agoniada, preocupada com o moleque adolescente.


Era 28 de dezembro. Atlas saiu sozinho do prédio, pegou um táxi pro escritório pensando em como lidar com o problema e concluiu que gatos e adolescentes não fariam mais parte do pacote de sua vida. Vive com a paixão recolhida pela Fábia, que por sua vez sente muita falta dos carinhos, da companhia e da conversa inteligente do Atlas.


Qualquer hora o garoto cresce, ou vai viver com os avós ingleses, cursar lá a universidade. O gato, muito apegado à dona, deve permanecer ainda por um tempo, mas já não é novo, talvez não dure muito.


Tomara que a Fábia não mude de ideia. Ele aguardará ansioso! Afinal, ela muito justifica a espera. O Lula perdeu três eleições antes de se tornar o melhor presidente da história do Brasil. E o Brasil quase foi ao fundo do poço antes de se reconciliar consigo mesmo.


Pensando no Lula, Atlas chegou mesmo a reconsiderar a restrição aos adolescentes e gatos. Bolsonaro e seus seguidores são muito piores. Mas não. Ele não era o Lula e não faria tanto esforço. Todo apoio ao presidente e à sua inigualável capacidade de negociação. Não seria ele, simples mortal, quem tentaria alcançar esse patamar.

Que venham os próximos anos!

Há de dar tudo certo!


Rio de Janeiro, dezembro de 2022.



 

Ps.: Último texto do último ano de um governo lamentável, que roubou nossa alegria, nossa saúde, um pouco do nosso prazer.

Por isso a opção de escrever sem retrospectiva, só fantasia!

Perdemos muito mais do que ganhamos nos últimos anos

Não vai ser fácil voltar aos patamares onde já estivemos, mas as portas do futuro, que eles tentaram fechar, estão abertas outra vez.

Felizes 2023, 2024, 2025 e 2026 pra todos nós!!!


 

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