AMIGOS
- Leo Viana
- 27 de jul.
- 7 min de leitura

Os três chegaram separados, mas pontualmente, ao crematório. Já fazia uma semana que o Altino tinha sido velado ali. Na ocasião, pouca gente apareceu além deles, mas somente eles tinham um compromisso assumido com o Altino e não falhariam.
Eram diferentes entre si, mas complementares na relação com o falecido.
O Altino tinha uma história curiosa: até os 18, vivera num orfanato. Ninguém conhecia a sua verdadeira origem e, apesar de ser um menino simpático e comunicativo, passou a vida lá porque os programas de adoção não eram populares como hoje em dia. Criado por padres honestos e dedicados, recebeu educação formal, aprendeu até língua estrangeira e saiu do orfanato direto pra embarcar num navio da marinha mercante, onde fez a carreira e viajou o mundo todo por mais de trinta anos.
Aos cinquenta, precocemente aposentado e com um patrimônio razoável, despediu-se dos colegas de alto-mar e deu início à terceira e última fase da vida, que também duraria mais de 30 anos. No final, foram praticamente oitenta anos de solidão, ainda que sempre cercados de gente querida. No final de todos os dias, desde a infância, era sozinho que o Altino se recolhia.
Vivera intensamente esta última fase da vida, em que frequentava quase diariamente o botequim da esquina de casa, pra onde tinha levado o Alvarenga, colega de navegação, e onde tinha conhecido o Bernardo, gerente de banco aposentado, e o Coronel, que fazia segredo sobre o passado, mas jurava de pés juntos que, apesar de militar, não tinha nada a ver com o estereótipo e que, se tivesse topado com o tal capitão em algum momento, teria tentado impedir que ele chegasse tão longe.
Pois eram esses os três amigos, chamados pejorativamente no bar de “o ABC do Altino”, que agora, cabisbaixos e circunspectos, aguardavam o atendimento no balcão do crematório, onde uma moça bonita atendia outra pessoa e pedia que eles aguardassem mais um pouco.
Quando foram chamados, a moça tentou - inicial e insistentemente - convencê-los a comprar um nicho no columbário, que é o espaço onde se guardam as urnas com as cinzas no próprio crematório. Mostrou fotos e tentou impressionar os três com o belo lugar, de assentos confortáveis, iluminação cênica e climatização.
Os três entreolharam-se assustados com a possibilidade de confinar o pobre Altino naquela salinha. Verdade que, a depender do ponto de vista, ele tinha vivido em vários cubículos, do orfanato aos navios e dos navios ao apartamento de sala e quarto em Copacabana, mas era uma alma livre, incapaz mesmo de “atormentar uma outra alma com sua presença constante”, como ele dizia, pra justificar o fato de jamais ter se casado ou mesmo – dizem - namorado ninguém. Uma das justificativas apresentadas pela mocinha no balcão era que a Igreja Católica não permitia a guarda doméstica de cinzas dos falecidos ou o seu espalhamento “por aí”. Houve nova rodada de entreolhares e o Coronel, que apesar da alcunha era o mais diplomático dos amigos do Altino, disse carinhosamente para a mocinha que ele não permaneceria em casa após sair dali.
Não podia garantir, no entanto, que ele não saísse “por aí”. E mais, com a suavidade possível, dadas as circunstâncias, disse que as determinações da Igreja Católica não eram exatamente aquelas que o Altino gostaria de atender. Até falou algo sobre ele ter estudado numa escola de padres, sem descer a muitos detalhes, mas frisou que ele não era praticante de religião nenhuma e até insinuou que ele fosse agnóstico, talvez pra acelerar o fim da conversa. A atendente não parecia se dar por convencida, mas atendeu à solicitação dos três senhores, temendo que as reações deles pudessem ocasionar algum acidente. Acidente que poderia ser tanto uma discussão inflamada, que tiraria a paz detalhadamente planejada do ambiente, quanto um acidente cardiovascular, considerando a idade dos envolvidos e o tipo de situação, referente ao destino final do quarto elemento do grupo, que aparentava ser bastante coeso.
Ao final da breve conversa, os quatro saíram da sala, três deles andando e um, o Altino, cuidadosamente acondicionado num pote que lembrava, en passant, uma lâmpada daquelas que contêm gênios, como nos contos de fadas. Não comentaram, mas foi o que passou na cabeça dos três.
Cabe agora uma pequena descrição/biografia dos amigos do Altino.
O Alvarenga é o mais antigo. Conheceram-se no primeiro dia de marinha Mercante, jovens assustados, obedecendo às ordens de todos. Os marinheiros iniciantes são, como em quase todas as profissões, o ponto mais baixo da hierarquia, a base da pirâmide, “o cocô do cavalo do bandido do pior filme de faroeste”, como eles aprenderiam, a duras penas. O Altino vinha do orfanato, o que lhe garantia algum grau de esperteza na defesa de suas coisas e de sua integridade física.
Os padres eram bons, mas tornaram o menino “cascudo”, capaz de enfrentar as adversidades do lado de fora. Um dos padres sempre dizia que era uma sorte ele ter ido parar lá. Os “reformatórios” públicos eram muito mais violentos e ele provavelmente sairia com traumas ou um ódio acumulado, coisas que não aconteceram em sua vida. Mas a relação com o Alvarenga surgiu ali, nas primeiras lavagens do convés, nas primeiras sessões de ajuda na cozinha antes ou depois do rancho. Identificaram-se imediatamente. As histórias eram diferentes. O Alvarenga vinha de família tradicional, da alta classe média, quase rica, mas não quis estudar e foi mandado a bordo pela família.
Despreparado para a dureza da vida, teve o suporte do Altino e, sozinho em sua beliche, jurou fidelidade eterna ao amigo. No final, mal viram o tempo passar nos trinta anos seguintes. Conheceram o mundo todo juntos, viram muita baleia e tubarão a partir dos conveses dos navios e, de muito diferente, só o fato de o Alvarenga ter se casado com a Mirtes, uma querida que lhe deu os dois afilhados que o Altino tinha. Nas vezes que vinha à terra firme, era lá que o Altino se abrigava. Os garotos foram morar fora quando terminaram a faculdade, a Mirtes faleceu e a vida do Alvarenga, de uns tempos pra cá, se resumia a ler, ir ao médico e encontrar o Altino no bar, com os outros amigos dele.
O segundo era o Bernardo. Bonachão, sorridente e gente boa demais, o Bernardo era o contrário do Alvarenga. Não gostava de hierarquia e ficava assustado com as histórias de navio contadas pelo Altino e pelo Alvarenga. Dizia que não se imaginava naquela monotonia de navegação, dias no mar sem ver gente, sem festa e multidão. Tinha passado a vida assim. Era professor, vivia cercado de alunos e alunas. Custou a se dar conta que estava perto dos oitenta anos. Tinha ficado amigo do Altino no bar, que frequentava com regularidade já havia uns vinte anos.
Não raramente levava uma paquera nova, eventualmente uma ex-aluna ou colega de trabalho dos tempos de escola, gente descolada que não se incomodava com a diferença de idade ou com o ambiente marcadamente masculino do botequim. Os velhos frequentadores eram cultos e conseguiam disfarçar o machismo com boa conversa ou debates aprofundados sobre temas diversos, conversas em língua estrangeira, boa música, enfim, aquilo que torna qualquer lugar melhor. Ultimamente, com o avançar da idade, tinha se tornado menos conquistador, andava um pouco menos festivo.
Alguns relacionavam com a provável consciência da finitude. Outros, menos dados à elaboração e mais dados à brincadeira, atribuíam aquela aparente tristeza à queda no desempenho sexual. O Bernardo, que apesar de mais quieto não era de perder a piada, dizia que estava só “se guardando pra quando o Carnaval chegar”, como diz o Chico Buarque num samba. Todos riam e a vida seguia.
O mais recente dos amigos do Altino era o Coronel. Seu passado ele não revelava. Uma parte do pessoal desconfiava que ele tivesse alguma coisa a ver com a ditadura, fosse um ex-torturador ou coisa desse tipo. Ele negava veementemente e dizia que não revelaria nada. Mas era tão radical em seus posicionamentos à esquerda com doses de anarquismo, que quem o conhecia há mais tempo, mesmo sem saber sobre o passado mais profundo, duvidava de qualquer concessão à direita. Não tinha família e nem filhos, mas afirmava que tinha ficado viúvo cedo e não tinha se esforçado para conseguir um novo amor. Tinha sido militar, dizia, mas não revelava a patente. O apelido, ele dizia ter sido colocado por uma amiga querida, parte do passado obscuro do Coronel. Já havia uns quinze anos que batia ponto no botequim, onde encontrava o Altino quase todos os dias e também o Alvarenga e o Bernardo, que foram se tornando seus chapas, apesar das diferenças.
Neste momento, os três tentavam pegar um táxi ou um carro de aplicativo que os levasse de volta à Zona Sul com o amigo embalado. A ideia era distribuir parte das cinzas pelo botequim, onde foram todos tão felizes; outra parte num navio, para que fosse sendo aos poucos dispersa pelos mares do mundo e, sobre a terceira parte, ainda discutiam sobre a possibilidade de, contra os ritos da igreja católica, jogar no antigo educandário onde o Altino tinha sido criado.
Chegando ao botequim com o Altino em pó, apressaram-se em levantar um brinde. A bebedeira durou grande parte da noite. Por volta das três horas da manhã, sob chuva torrencial, completamente bêbados, entraram numa discussão ferrenha sobre quem espalharia o Altino no bar. A briga resultou na queda da urna de gesso na quina da calçada, àquela altura quase submersa pelo aguaceiro que corria pela rua.
O Altino, bom nadador em vida, não pode fazer nada e escorreu pela correnteza da sarjeta inundada, sob os olhares atônitos dos amigos.
O Alvarenga ameaçou mergulhar, mas foi impedido pelo Bernardo, que tentava também amparar o Coronel. Num desequilíbrio pontual, os três foram ao chão por causa da calçada escorregadia e terminaram a madrugada na emergência do Copa D’Or, sem o amigo que corria para o mar provavelmente através das galerias de drenagem.
O Altino era livre demais pra terminar confinado em algum lugar.
Mesmo em pó.
Rio de janeiro, julho de 2025
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