Ah, o tempo...
Alguém já disse, com absoluta propriedade, que a percepção de tempo é diferente, a depender de que lado da porta do banheiro você está. Ou que o curto tempo que se leva para esvaziar a bexiga no lugar certo pode equivaler a séculos pra quem espera – de pé, do lado de fora - para fazer a mesma coisa. Ou ainda mais, se quem estiver do lado de dentro for um homem com mais de cinquenta anos, com provável hiperplasia da próstata.
A primeira grande guerra durou quatro anos e terminou com uma Europa desconfiada, que passou os 21 anos seguintes se preparando para a próxima, que durou seis e terminou com um mundo diferente, especialmente considerando a perspectiva de tempo até sabe-se lá o que viria depois. Nós não estávamos lá pra saber com certeza, mas a duração foi quase infinita pra quem estava. Multidões confinadas ou em fuga por vários invernos, racionamento de comida, bombardeios, milhões de mortes. A Europa arrasada e a divisão ideológica do mundo nuclear fizeram a percepção de tempo mudar novamente. Os segundos que separaram o lançamento das bombas em Hiroshima e Nagasaki da destruição causada por elas trouxeram dados novos ao jogo. Em grandeza tanto vetorial quanto escalar. Uma conta difícil de fazer. E não custa lembrar que pouco se fala no Pacífico, onde o tempo já deve passar mesmo mais devagar, com aquela imensidão de água, e onde a guerra foi sangrenta como nunca e os únicos prováveis vencedores foram os tubarões.
O tempo, que não respeita a história, seguiu aprontando. A guerra dos seis dias, que consolidou o domínio regional de Israel - e de suas idiossincrasias - foi rápida pra quem ganhou e para quem perdeu, mas também consolidou o clima de desconfiança mútua que persiste e se amplifica, ainda que em muitos momentos a economia tenha superado – mesmo lá – as diferenças de ordem cultural e religiosa que nutriram por séculos as rivalidades locais.
Os quase quatrocentos anos de escravização de negros e negras no Brasil, obviamente um tempo diabolicamente longo de crueldade e desumanização, parecem ter sido pouco para amplos setores sociais que mantém a forma de raciocínio igual a dos senhores de engenho.
Hoje, munida de relógios chineses (os originais suíços frequentam pouquíssimos pulsos) ou de monitores de led em celulares ou notebooks (também chineses, claro), gente em diferentes posições, mas em geral subalternas, acompanha o passar do tempo a partir de suas próprias perspectivas, num tempo quase individual, e que passa mais rápida ou lentamente, mas sempre insuficiente, a depender do tipo de trabalho que desenvolve, do tipo de vida que leva, do lugar onde vive ou até da forma com que encara o mundo e do que espera dele.
Os 21 anos de ditadura miliar no Brasil foram longos o suficiente para que deixassem herdeiros órfãos em ambos os lados do espectro político. Órfãos de verdade na esquerda, dada a quantidade de assassinatos e desaparecimentos perpetrados por quem se manteve no poder após o golpe. Órfãos metafóricos na direita, que marchou com a família pra promover o golpe, viveu feliz sem a “ameaça comunista” durante os anos do Brasilicídio que se sucederam ao golpe – amaldiçoada memória do 31 de março - e chora até hoje o fim do regime de exceção.
Há tempos menos traumáticos, como a duração de um bom filme, que é geralmente inferior ao que desejamos, mesmo quando ele ultrapassa as duas horas de exibição. Um filme ruim de 50 minutos pode durar meses se você não puder interrompê-lo. E esse é dos maiores trunfos do streaming, esse jeito de ir ao cinema sem sair de casa. Perde-se em dimensão da tela, mas a pipoca sai bem mais barata e você pode antecipar o jantar para o meio do filme sem perder nada.
Quem tem medo de avião acha tranquilo levar três dias dentro de um ônibus entre o Rio e Belém, por exemplo, enquanto sofreria como um servente nas obras do Egito se tivesse que enfrentar os poucos minutos de um voo Santos Dumont x Congonhas.
E por falar em Egito, a civilização antiga que deixou mais relíquias para a humanidade também é uma grande referência para as nossas reflexões sobre o tempo. Monumentos de pé há quatro mil anos nos lembram que há muito mais dificuldade de compreensão que certezas sobre a Terra, a ponto de não haver consenso até hoje sobre a forma ou o tempo que se levou construindo pirâmides lá, entre outras coisas.
Música de Bar e Boteco, ouça!
Ah! A duração dos desfiles de escola de samba é uma carioquíssima fonte de discórdia em termos de temporalidade. Os oitenta minutos arbitrados para os desfiles do grupo especial do Rio de Janeiro são pouco tempo para quem desfila (um componente, que não seja da bateria, passa, se tanto, 25 minutos desfilando), mas podem ser quase infinitos para quem não entende o espetáculo e vai pra arquibancada assistir à passagem de seis escolas em sequencia. É uma questão de ponto de vista. Eu, particularmente, gosto muito.
Quando o time para o qual você torce está perdendo, o jogo tende a demorar mais. Nunca mais esqueci a derrota de um a zero do Flamengo para o Botafogo, com um gol de Renato Sá aos 9 minutos do primeiro tempo, em 03/06/79. O goleiro do Botafogo, o inesquecível Borrachinha, agarrou como nunca naquele dia e o Fla perdeu a invencibilidade de 52 jogos que vinha mantendo. O jogo durou mais que toda a campanha invicta anterior, na minha imatura cabeça de torcedor.
Esse conjunto anárquico de reflexões sobre a duração das coisas, de fatos históricos a acontecimentos ordinários e de questionável importância, me veio à cabeça por algumas razões. Eu conto. A primeira foi a lembrança da primeira vez que um ano tinha me parecido mais curto que o normal. Em dezembro de 1975, aos sete anos, motivado por alguma coisa que não me vem à memória agora, lembro de ter reclamado que o ano passou rápido demais. Muito tempo depois, ao completar meu curso na universidade em muitos anos mais que o razoável, mas que não pesaram absolutamente, refleti que cada um daqueles momentos foi tão bom que eu não sofreria caso entrasse num looping e recomeçasse tudo. Mais tarde pouca coisa, quando iniciei um segundo curso, os dois anos que resisti antes de abandonar as carteiras da universidade me pareceram longos como uma aula de cálculo numa sexta feira à noite. Isso pra quem, como eu, não gosta de cálculo diferencial e gosta de noites de sexta feira, é claro. E olha que no curso nem havia matemática de espécie alguma.
Mas a maior de todas as motivações, e aí não resta a menor dúvida sobre a relatividade na percepção da duração das coisas, são esses infinitos anos de duração do pior governo da história do Brasil. Pra além da sensação de que o tempo não passa, há a quase certeza de que recuamos gerações em termos de complexidade de pensamento, reduzindo a reflexão a um maniqueísmo idiotizado e pautado, tanto nas redes quanto na grande mídia, por um tipo de seita da morte e validado pelas instituições divididas, como num filme ruim, entre o dramático, o cômico e a mera figuração. As cenas são ruins, a fotografia é ruim, os diálogos são lamentáveis, o roteiro é indigente, a trilha sonora é o som do inferno, o filme não acaba, não tem como pausar e estamos todos na porta do banheiro, apertados, há quase quatro anos!
Rio de Janeiro, abril de 2022.
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