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A SALA



O grande relógio de pêndulo, num canto da parede da majestosa  sala de jantar era a única peça que tinha acrescentado à decoração daquele cômodo do enorme apartamento herdado dos pais, comprado na planta e decorado por eles, também herdeiros, no final dos longínquos anos 40.


Os demais espaços foram modernizados e as instalações elétrica e hidráulica eram recentes, de uma última reforma feita durante a pandemia, mas a sala parecia – e estava – parada no tempo. Claro que  nada ali era por acaso. Desde muito cedo se apegara àquela sala, àquela disposição de móveis e objetos de decoração. Um desenho do Niemeyer emoldurado em 1948, uma aquarela de um autor do qual não lembrava o nome, mas que era de 1947; uma cristaleira que raramente fora aberta - a não ser para a limpeza – repleta de louças usadas pouquíssimas vezes. O ambiente quarentista tinha atraído e repelido amantes ocasionais.


Tinha medo que subtraíssem alguma coisa da sala e, por isso, raramente levava alguém pra casa. Jamais admitiu alugar o apartamento em que tinha sido criança e, mesmo nos dois fracassados casamentos em que se envolvera, preferiu morar em outros lugares e manter intactas as lembranças físicas do passado. Agora, novamente solteira e de volta ao seu “covil”, como irônica e carinhosamente se referia ao imóvel, ouvia as badaladas discretas do relógio e sentia a gata, ainda estranhando o local, se aninhar a seus pés.


Gastava uma parte importante de seus rendimentos na manutenção daquele museu particular e fechado à visitação pública. Os dois ex-maridos não entendiam, as amigas não entendiam, os colegas de trabalho não entendiam. Trabalhava pra manter memórias que eram só suas. Não tinha irmãos ou irmãs e praticamente todos os que se relacionaram de alguma forma com seus pais já tinham terminado seu tempo de permanência no mundo.


Não tinha particular relação com coisas ligadas à religião ou outras sobrenaturalidades. Pessoas próximas (tinha grandes amigos e amigas) tentavam entender aquela mania como uma forma de se aproximar dos pais falecidos. Ela negava, convicta. Gostava de arte, gostava do Art Dèco do prédio e da decoração. Até do som do velho gramofone com a agulha metálica se arrastando sobre os velhos discos de 78 rotações de cera de carnaúba ela gostava. A luz, mais fraca que a do restante da sala, naquele amarelo quente das lâmpadas incandescentes, já não era mais original. A troca das lâmpadas para o modelo novo, de led, foi um pouco traumática, mas conseguiu manter o efeito. Era ali que ouvia Noel Rosa, Francisco Alves, Orlando Silva, Araci de Almeida e Elizeth Cardoso, entre outros tantos, com a impressão de que cantavam ao vivo. A ambiência permitia esses devaneios. Corrigiu-se ao lembrar que Noel morrera em 1937, mas Noel, pensou, é atual em qualquer época!


Foi ali que ouviu, guiada pelos pais, os primeiros sons de João Gilberto, Tom, Caetano, Gil, Chico, Milton, Paulinho. Muito jazz, muito rock’n’roll dos anos 50 e 60, muita Edith Piaf, muito Tony Bennett, muito Yves Montand, muito Charles Aznavour, muita música boa.

A vitrola, mais moderna, ficava numa saleta ao lado. A potência do som invadia a velha sala. Só discos muito antigos pousavam no velho gramofone , cópia fiel daquele que ilustrava os selos da RCA.


A mania tinha começado num passado já distante. Os pais, muito jovens e ambos herdeiros de fortunas, casaram-se muito cedo e vieram do interior para o Rio. Nos distantes anos 40, Copacabana era um must. Gastaram muito dinheiro no apartamento, mas “muito” é uma quantitade sujeita a parametrização. Muito pra quem? Para eles, nem era tanto dinheiro assim.

O passado de glamour tinha ficado pra trás, os pais morreram há tempos. A aposentadoria da Helô e o que sobrou da herança já não eram tão impactantes quanto já tinham sido em outra época. Não foi prudente na gestão do dinheiro. Ajudou muita gente e também gastou muito à toa. Mas se orgulhava de ter conseguido manter o apartamento, seu ninho, seu refúgio e seu museu particular.


O relógio badalava outra vez. Estranhou o intervalo. Talvez estivesse com defeito e já não haviam relojoeiros capazes de mexer nele sem risco. Os últimos tinham aposentado ou morrido nos anos 90. Pensou no que fazer. Não gostava de nada que não fosse funcional, ainda que não fosse usado sempre, como as louças guardadas. A estética pura a incomodava. Abria pequenas exceções para um ou outro objeto dos pais, mas era só. Talvez reflexo de tantos anos dando aulas na faculdade de arquitetura tenham deixado essa marca. Um velho relógio encostado sem funcionar ou badalando sem critério, sem levar em consideração a hora certa, era um estorvo.

Aquele passava a ser o maior problema da conjuntura. Já havia muito que se desligara das preocupações cotidianas das pessoas. Sempre fora politizada. Herdara dos pais,  juntos com os bens, uma boa consciência política. Até militara, discretamente e já depois da abertura política, em grupos da extrema esquerda. Financiara cursos e viagens de dirigentes de esquerda, contribuira com grandes mutirões para construção de casas populares, em ações claramente subversivas, durante e após a ditadura, mas agora já não se importava muito. As preocupações não iam além de cuidar da própria saúde, que não andava bem, de elaborar um testamento e de manter o apartamento.


Era o filho que não tivera, a descendência da qual abdicara pela carreira e pelos desvarios, os bons desvarios que deram graça à vida, inclusive quando ela parecia não ter mais sentido.

Não lhe vinha à mente ninguém a quem deixar o dinheiro que ainda lhe restaria ao morrer, mas escolheria alguma entidade para a qual doasse o conteúdo das contas bancárias. A saúde baqueava. Talvez fosse a cobrança pelos desvarios aqueles. Entretanto, a medicina avançava e as possibilidades eram muitas. Mas... E o apartamento? E a sala? Ninguém daria o mesmo valor, teria a mesma dedicação, usufruiria do mesmo jeito. Não era uma celebridade, cujos bens interessassem a museus ou pinacotecas importantes. Era uma herdeira quase desconhecida, professora universitária de tempos pré-produtivistas, que pouco publicara, apesar de muito querida pelos alunos, milhares de alunos, que a homenagearam diversas vezes. Se doasse, venderiam tudo e aquela unidade deixaria de existir. Quadros, louças, bibelôs, o relógio, o gramofone.


Toda aquela memorabilia se perderia inexoravelmente. A razão de sua existência desapareceria na fumaça do tempo.


Por um momento se sentiu muito egoísta, ao imaginar que aquela preocupação era exclusivamente dela. Precisava compartilhar isso, chamar a atenção das pessoas, tornar aquele um problema coletivo. Era urgente. A vida não esperaria mais.

Foi até a cozinha e pôs uma chaleira d’água no fogo. Talvez um chá a ajudasse a refletir. A gata a acompanhou. Pegou o telefone e ligou para o médico relatando um mal estar que passava a incomodar mais que o normal.


O álcool gel da pandemia ainda estava numa prateleira no corredor.

Foi fácil iniciar o incêndio, num átimo da antiga radicalidade. Outro desvario.

Os bombeiros atrasaram.

A gata conseguiu escapar.

Helô e a sala, não.

 

Rio de Janeiro, março de 2024.


 

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