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A ORGANIZAÇÃO



A vida - já dizia algum filósofo de botequim provavelmente muito antes da própria invenção do botequim – é uma caixa de surpresas.


Alexeï pensava nisso enquanto embarcava no aeroporto de Madrid, o imenso Barajas, em direção ao norte da Europa na continuidade de sua missão. Poliglota desde a mais tenra idade, quando nasceu numa colônia ucraniana, no interior do Paraná, falava português com sotaque de São Paulo, para onde fora aos 14 anos fazer o ensino médio e o posterior curso de relações internacionais na USP. Em casa aprendera o russo e o ucraniano. Os fundamentos de inglês e espanhol da escola básica foram o alicerce para que se aprofundasse nesses idiomas com vontade e capacidade surpreendentes mesmo para os mestres. Não demorou muito até que dominasse o alemão, o holandês, o francês e o italiano. Agora se desafiara a falar mandarim, mas não era um projeto prioritário.


Aldir Blanc, Nelson Sargento, Gisa Nogueira, Wilson Moreira e Cristina Buarque, escuta aqui!


Prioridade mesmo era chegar a Amsterdam onde, além de fumar um baseado, encontraria com o portador das informações que deveria levar à Inglaterra na viagem seguinte.

Seu ingresso na organização ocorreu por acaso, mas hoje se orgulhava do trabalho. Foi contactado num bar em São Paulo, onde foi visto conversando simultaneamente em quatro idiomas sobre assuntos diversos com um grupo de turistas. A fluência que ostentava impressionou o observador, que vinha de intensa busca por um poliglota com passaporte brasileiro de origem. Não que fosse complicado, para eles, obter um passaporte de qualquer nacionalidade, mas era quase impossível fazer um gringo falar português do Brasil sem sotaque. O Alexei era a galinha dos ovos de ouro. A organização, como se verá a seguir, pretendia expandir seus contatos e sondagens para o exterior, mas viajar também dá trabalho e a prioridade era o Brasil.


Não havia nada demais na organização. Não era ilegal ou imoral, mas zelava por ter contatos nos lugares certos. Inicialmente, reunia pessoas que queriam levar uma vida menos determinada pelas pressões da modernidade, mesmo dispondo de recurso para isso. Gostavam de ouvir rádio, falar ao telefone e ver televisão, entre outras frugalidades. Seu fundador, Joaquim de tal, português aposentado que por anos tocou uma padaria no subúrbio do Rio, tinha como objetivo de vida uma cadeira de balanço na calçada, de onde pudesse ver os netos brincando na rua e cumprimentar os vizinhos que passavam. Em sua grande maioria, os demais associados tinham histórias parecidas, envolvendo uma vida atribulada em diversos campos de atividade. Executivos de grandes empresas, atletas de alta performance, grandes músicos populares, trabalhadores braçais, sindicalistas, professores. Não havia qualquer limitação de origem. Bastava o interesse em tranquilidade.


Violão brasileiro contemporâneo, escuta aqui na Spotify.


O Alexei, obviamente, não entendeu nada quando foi chamado para conversar. Malandro, achou que era trote, claro. O headhunter queo encontrou deu apenas duas pistas - em russo!! - e o papel com o endereço onde ele deveria, caso houvesse interesse, se apresentar para a entrevista.

O edifício insuspeito, no centro velho de Sampa, era bem cuidado e limpo, ocupado por diversos escritórios de advocacia e consultórios de dentistas, psicólogos e outros. O décimo andar, no entanto, destoava dos demais. Além do elevador privativo, aparentemente instalado depois da construção do prédio, num canto pouco iluminado do hall de entrada, não tinha identificação da ocupação, que saltava do nono para o décimo primeiro. A vontade inicial foi voltar dali, mas agora a curiosidade apertava mais. Não tinha nada a perder. Vinha de concluir o curso de mestrado em geopolítica latino americana, estudando a relação de interdependência econômica entre os países do cone sul e a interferência da China, mas não via possibilidade de emprego no curto prazo. Não ambicionava o Itamaraty, mas também não tinha ainda cacife para ser professor universitário. Em época de vacas magras, as universidades só contratam doutores. Ia se virando como guia de visitantes estrangeiros em São Paulo e dando aulas particulares de línguas para interessados, geralmente gente que pretendia se mudar para outro país. Na maioria dos casos, gente com dificuldades práticas com o próprio portugues.


Foi olhado com desconfiança pelo ascensorista quando entrou no elevador. Disse desnecessariamente o andar pra onde ia. Estranhou também o ascensorista de bermudas, camisa florida e havaianas.


Chegou ao andar e entendeu menos ainda quando viu a pequena multidão de pessoas, todos passados dos cinquenta anos, majoritariamente homens, mas também muitas mulheres. Todos aparentavam muita saúde e vigor físico, apesar de um certo calor. O sol entrava tímido pelas grandes janelas com filtros escuros, mas o ar condicionado não dava conta do imenso salão decorado com plantas ornamentais, muitos bares, espreguiçadeiras, mesas de jogos de tabuleiro, boleros tocando baixo ao fundo no som ambiente, alternando com chorinhos e sambas antigos.


Foi recebido por um diretor de short florido que falava espanhol e, mesmo parecendo ter idade para ter participado da guerra civil espanhola, se mantinha estranhamente jovem.

Levado a uma sala decorada com fotos de praias e florestas, viu-se cercado por quatro outros senhores saudáveis que, agora menos amistosamente, encheram-no de perguntas em idiomas variados, numa sabatina que envolvia esportes, turismo, música, cinema e outras amenidades. Respondeu a tudo com a mesma fluência vista pelo observador anterior e em pouco tempo a banca saiu para deliberar, tal qual acontece numa defesa de tese acadêmica. Sem saber se deveria sair da sala, esperou por uns cinco minutos, até que uma senhora, com o mesmo perfil saudável, comunicou que ele havia sido aprovado com louvor e, se aceitasse, passaria a exercer uma importante função na organização.


Entendia cada vez menos o que acontecia ali, mas o emprego parecia muito bom. Foi informado de que deveria trazer o passaporte para a obtenção dos vistos mais complicados e que faria sua primeira viagem logo a partir da semana seguinte. Deveria observar e testar a qualidade de algumas das grandes piscinas azuis de aguas termais da Islândia. A organização tinha interesse em férias, descanso, sombra e água fresca sem complicações, tecnologia ou modernidades diversas. E levava isso tão a sério que precisava de um enviado poliglota que fizesse as sondagens, entrando em contato com gente local, preferencialmente também interessada em Lazer sem estresse.


Arnaldo Antunes, Frejat e Geraldo Azevedo cantam Mário Lago, escute no Youtube!


A primeira viagem deu tão certo que agora se encontrava no aeroporto de Barajas, A caminho de Amsterdã, onde encontraria o responsável por um clube de camping no norte da Holanda, absolutamente secreto. De posse das informações, as levaria ao advogado da organização, que estava em Londres a trabalho, e voltaria à Holanda para conhecer o clube, que funcionava apenas dois meses por ano, quando a temperatura ultrapassava os vinte graus. A organização não se caracterizava pela praticidade. As duas viagens à Holanda em poucos dias eram uma exigência. Só com o máximo de atribulação no decorrer de sua vida produtiva alguém poderia almejar o descanso absoluto, lema do grupo. Um dos emblemas, aliás, escolhido em assembleia, tinha o desenho de um pastel junto a um copo de caldo de cana.


Nenhum de seus sócios faria – jamais!! – esse trabalho duro após o ingresso na organização. Seus empregados, entretanto, bem remunerados e valorizados, eram obrigados a um trabalho intenso. Não chegava a ser desumano, mas exigia certamente muito empenho. E horas de vôo.

Alexeï não se queixava de nada. Adorava aviões e reuniões. Amava exercitar os idiomas que falava fluentemente.


O telefone tocou alto, bem na hora em que ele chegava ao portão de embarque. Não queria atender, ocupado com o passaporte, e querendo mostrar o bilhete eletrônico na tela do celular. Apertou o botão cancelando a chamada, mas não adiantou muito. O telefone não parava de tocar. Até que atendeu.


E acordou.

Mas o sonho foi muito bom, especialmente a ideia do baseado em Amsterdam. Deve acalmar a mente.

Melhor parar com esses alucinógenos!


Lyon, França, janeiro de 2023.


 

Cultura


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