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Flor



A Flor tinha certeza que o roteirista da história dela era, no mínimo, um excêntrico. A começar por permitir que ela se chamasse Florinilda. Era o nome de uma das trisavós de seu pai, que tinha desafiado o conservadorismo da virada do século XIX para o XX, abandonado o marido e fugido com a melhor amiga para viver um romance marginal numa pequena cidade do interior de São Paulo. A família cultuava com orgulho a coragem da ancestral, o ímpeto, o protagonismo. Flor só não ficava completamente realizada com o nome. Porque justo ela??? Tinha três irmãs mais velhas com nomes “normais”. Ana, Débora e Sofia nunca sofreram bullying por causa dos nomes, mas a pobre Florinilda penou muito, até que se tornasse informalmente “Flor”.


Lembra sem nenhuma saudade de praticamente todas as incontáveis vezes em que precisou responder à chamada na escola. Vivia sobressaltada com a possibilidade, sempre em aberto, de encontrar alguém, algum antigo colega de ginásio, por exemplo, que lhe chamasse em voz alta pela rua.

Quando concluiu o curso de engenharia mecatrônica, já morando em São Paulo e sozinha, Flor ainda vivia sob a tensão do nome que recebera e a dúvida quanto à possibilidade de alterá-lo para ter um pouco mais de paz interior. Ao mesmo tempo, também orgulhosa de sua antepassada e ainda meio mística, temia estar sendo ingrata com a matriarca transgressora. Não foram poucas as sessões de análise. A cada dia um novo desafio pessoal, uma nova perspectiva. Adotar um nome social? Já era “Flor” para a maioria das pessoas. Na grande cidade passou praticamente despercebida, salvo um ou outro curioso da universidade, além dos professores e do pessoal de secretaria, gente que lidava com os nomes de alunos e alunas. Consultas médicas e obtenção de documentos também eram desconfortáveis. O diploma, guardado com carinho, lembrava sempre a ela o legado de família.


Só nunca teve problemas mesmo com o desempenho escolar, o que a tornava, involuntariamente, um tipo de celebridade, aumentando o risco de ser citada e ter seu nome repetido. Uma encruzilhada, uma sinuca de bico.


Foi na entrevista, em inglês, para a vaga em uma multinacional de automação industrial que Flor conheceu o Miguelzinho. Tímido, se apresentou assim mesmo. Miguelzinho parecia um doce de pessoa. Flor inclusive achou que pudesse conhecê-lo de eventos anteriores. Miguelzinho estudara no exterior, mas eventualmente vinha a encontros temáticos no Brasil. A crise o fez voltar em definitivo e agora intentava iniciar a carreira fora da universidade, em uma empresa reconhecida internacionalmente.


Conversaram na sala de espera e a identificação foi imediata. Flor tinha se tornado uma mulher muito interessante, em que pesem as crises internas que vivia por causa do nome que herdara. Miguelzinho, com toda a timidez, era muito inteligente e um bom papo. Muito atraente aos olhos desacostumados de Flor, que nunca tivera um namorado antes. Fugia mesmo dos meninos que se interessavam por ela, sempre preocupada em driblar o eventual contato com seu nome diferente. Traumatizara-se aos oito anos, quando o Eduardinho, seu então melhor amigo, provavelmente reproduzindo o mau costume de gente mais velha, disse a ela que Florinilda era um nome horrível.


Nunca mais olhou pro Eduardinho e nem pra garoto nenhum, ao menos com interesses que fossem além das tarefas acadêmicas.

O Miguelzinho era o primeiro homem com quem conversava despretensiosamente em muitos anos. Sentia-se, logo nos primeiros cinco minutos, como que se libertando. Era uma mulher livre afinal, distante do peso da família, ingressando num mercado de trabalho masculinizado, mas a alta capacidade que já tinha demonstrado na universidade precisava se manifestar também na vida pessoal. Queria muito se interessar pelas pessoas, ter amigos, sair pra beber e dançar. O nome – e seus problemas pessoais com ele, principalmente – tinha lhe tirado o melhor da juventude, acreditava.


O Miguelzinho era a luz que faltava. Nem ela sabia como tinha se identificado tanto com a pessoa após meros 10 minutos de conversa. Talvez fosse justamente a carência de gente com quem conversar sem o medo de sofrer algum tipo de gozação. Eram engenheiros mecatrônicos falando de amenidades, uma exceção num mundo de gente que geralmente nem sabe o que é mecatrônica.

Trocaram telefones. Nenhum dos dois foi selecionado para a vaga, mas receberam parabéns pelos currículos e a promessa de permanecerem no banco de talentos da companhia para uma nova eventual chamada.


O primeiro beijo aconteceu depois do jantar italiano numa cantina da 13 de Maio. A terceira taça de vinho fez com que soltassem as amarras que ainda faltavam. E as línguas. A do Miguelzinho ainda confundia palavras em português com o inglês que fora seu idioma do dia a dia por tantos anos estudando fora. Flor não tinha perdido o “r” retroflexo do oeste agrícola de São Paulo. Riam à vontade.

E Flor, pela primeira vez na vida, resolveu abrir o verbo sobre seu principal problema. Disse com todas as letras a Miguelzinho que sofrera por anos – e ainda sofria – por conta de seu nome de época. Sentia-se inadequada, incapacitada para uma sociabilidade normal, deslocada sempre, mas insegura quanto a trocar o nome, que afinal era uma justa homenagem a uma mulher forte e decidida.


Miguelzinho riu.

Flor chorou.

O homem por quem aparentemente estava se apaixonando também ia fazer pouco de seu nome? Era um trauma definitivo. Nunca mais olharia pra homem nenhum mesmo.

Mas antes que ela pudesse levantar e sair, já tinha juntado a bolsa e sacado um cartão de crédito para dividir as despesas e nunca mais voltar, Miguelzinho abraçou-a e pediu calma. Sem pressa, o que poderia ter efeito contrário e aumentar a raiva de Flor, tirou do bolso uma carteira de identidade meio amassada e pôs sobre a mesa.

Ao lado da foto de pós adolescente, óculos fundo de garrafa, era possível ler o nome completo: Jair Aécio Michel Cunha.


Homenagem a três parentes distantes, muito queridos na família.


Foram juntos a um cartório no dia seguinte e viraram Miguel e Flor definitivamente.

Casaram-se alguns anos depois e decidiram não ter filhos.

Talvez nem tivessem dificuldade para escolher nomes, mas tinham medo. O futuro é uma coisa incerta.


Rio de Janeiro, julho de 2022


 

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Mário Lago




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