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AULA



Moisés e Rachel amaram-se ao primeiro esbarrão, numa festa junina de praça, num bairro escondido longe do centro numa cidade pobre da Baixada Fluminense. Os nomes do velho testamento entregavam a origem. Vinham da igreja evangélica. Mais precisamente das igrejas neopentecostais. Cada um de uma, que a fartura era muita. Mas era a origem. Andavam ambos, já havia algum tempo, afastados de suas igrejas. Ousaram ir mais longe, dedicaram-se a conhecimentos além daqueles que impregnavam os jovens como eles, estudaram e entraram, coincidentemente no mesmo ano, em grandes universidades para cursar geografia, ele, e história, ela.  O contato com jovens de fora daquele ambiente abriu, em paralelo, o universo de cada um. O esbarrāo casual levou ao pedido de desculpas, à troca de olhares e à conversa onde tudo isso se revelou. Já tinham iniciado flertes nas universidades onde estudavam, mas nada cuja seriedade pudesse abalar o que estava acontecendo ali, no meio daquela gente mal fantasiada de caipiras, com dentes pintados de preto e falsas pintas nos rostos das meninas. Compraram, num clichê, uma maçã do amor cada um. Moisés pensou oferecer um algodão doce, mas imaginou que ela poderia considerar uma ofensa, uma sub-avaliaçāo de sua maturidade. O mesmo raciocínio passou pela cabeça de Rachel, mas algodão doce era mesmo coisa de criança. E aquelas cores artificiais eram assustadoras. Ambos, sem que soubessem dessa outra coincidência, vinham procurando comer coisas mais saudáveis. Todo aquele açúcar - e ainda eventualmente colorido de azul ou rosa – não podia ter lugar.


Objetivamente, deu liga. Pra desgosto das famílias tradicionais e carolas, casaram-se e saíram lá dos cafundós da quebrada pra viverem o amor bonito no Centro do Rio, onde as tentações são muitas.


Tornaram-se, ambos, professores da rede pública. Muitas horas diárias em sala de aula, salários abaixo da média, mas muita felicidade em mudar o destino que antes apontava pra outro caminho. Caminho do qual, lamentavam, muitos amigos de infância e adolescência não conseguiram fugir. Se não caíssem em algum grau de delinquência, terminariam a vida num emprego ruim, com muitos filhos, uma vida sofrida e com o consolo da igreja.

A vida ia tranquila, sem sustos além dos previstos pra quem encara adolescentes no ensino médio todos os dias.


Até que aconteceu. A formação religiosa do Moisés ajudava no contato com grande parte da molecada, que tinha origem semelhante. Era um crítico mordaz da manipulação da bíblia e da teologia por pastores de má intenção, cultores de uma religião de mais ódio que amor, de mais muros que pontes.


O garoto era bem articulado e tinha resposta pra quase tudo. Na maioria dos casos perguntas que ele mesmo formulava e que pareciam obedecer a uma fórmula. A identificação foi rápida. Vinha de uma das grandes igrejas neopentecostais e, por óbvio, fora doutrinado a entender a extrema direita como a única saída. Curiosamente, num mundo pobre dominado por nomes cheios de “y”, “n”, “k”, “w” e “ll”, o pequeno desafiador se chamava João.


As discussões, interessantes por trazer a turma junto, mas desgastantes por descambarem pra leitura dogmática que acompanha a mistura de religião com qualquer tema, passava por coisas inusitadas, tais como a intransigente crítica ao feminismo e aos programas sociais, entendidos como assistencialismo, mesmo entre os mais pobres cooptados por essa estranha compreensão da vida. Não cabe aqui detalhar o nível a que chegaram, oscilando sempre entre a razão e a emoção, com doses de drama. A maioria da turma, ainda que animada com os debates, pendia para o apoio ao professor, cujas explicações eram fortemente baseadas em dados científicos, fugindo das simplificações e dogmas.


Foi dura a discussão sobre a guerra da Ucrânia. Especialmente porque em guerras ninguém tem razão mesmo.


Mas a coisa só se inviabilizou quando, depois dos ataques a Israel, começou o massacre em Gaza. A condenação ao ataque a Israel foi consensual. Mas o genocídio que se seguiu foi fortemente defendido pelo aluno, sob a tese de que o “povo de Israel” era invencível, numa interpretação rasteira e fundamentalista da Bíblia.


Moisés contra argumentou e foi fundo pra explicar que os povos tinham direito a um Estado, que arrasar a vida de milhões poderia criar ainda mais intolerância da parte de todos contra o estado de Israel e seu povo, que não é unânime na defesa dos ataques, ainda que tenha, obviamente sofrido terrivelmente com os atentados do Hamas.


Quando tudo parecia pacificado, João atacou dizendo que o professor deveria honrar seu nome, Moisés, e guiar a todos no caminho da terra prometida, fora dessa doutrinação de esquerda.

Perdeu a paciência, pôs o mala pra fora de sala e continuou a aula.

Velho Testamento pra quem exige olho por olho.


Saiu da escola a tempo de ir ao samba com a Raquel, perto de casa.

No dia seguinte, ou na próxima aula, ele tentaria uma solução mais criativa para o problema.

Ah, os alunos...

 

Rio de Janeiro, março de 2024.


 

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