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VIAJANDO


Quase toda viagem longa é uma mistura de alegria e reflexão sofrida. Claro que não me refiro às mudanças definitivas. Quem se muda de cidade ou de país em geral vai sem passagem de volta. Tem uma preocupação a menos, não tem pressa e datas na cabeça e, salvo exceções, viaja após longa e profunda análise de prós e contras. Enfim, problema de cada um. Explico. Eu viajo sempre pra voltar, com planejamento mínimo. Tenho saudade das pessoas e das coisas e não posso levar todas comigo.


A certa altura da viagem, quando ela dura muito tempo, bate um incômodo com a falta da comida de casa, com a falta da conversa ao vivo com quem se está acostumado a conversar, com pequenos hábitos que nos fazem únicos e que são irreprodutíveis em terra estranha, entendendo-se como tal quaisquer formas de hospedagem, inclusive as solidárias e amigáveis, que são as melhores.


Viajo pra o exterior há 20 anos. Uma conjunção astral positiva, ou como quer que se queira definir a sorte que veio sobre mim, fez com que a primeira viagem à Europa frutificasse em outras 15, ao ponto me tornar quase local em cidades como Bruxelas e Lyon. Nesses locais, já aconteceu várias vezes, encontro conhecidos na rua, no metrô, no mercado. Me sinto muito à vontade, converso com as pessoas no meu francês macarrônico, passo momentos de extrema felicidade, mas sinto a mesma vontade de ir embora, a partir de certo tempo de permanência, que sinto numa consulta médica ou numa reunião de trabalho. Todo este prelúdio tem o objetivo de situar o leitor quanto à minha relação com o que não é brasileiro. 


Não sou ufanista e defensor intransigente das qualidades do Brasil frente ao mundo. Seria um cego, como os muitos que há por aí, se fizesse uma mera defesa patriótica do que é nosso, em detrimento da qualidade do que há em outros países. Gosto do “Ouviram do Ipiranga”, mas também gosto muito do “Bem unidos façamos, nesta luta final, uma terra sem amos...” 


Excetuando-se os amigos, que são amigos em qualquer parte, nós não temos aqui grandes catedrais medievais, sistemas de metrô complexos, cervejas de 800 anos, vinhos sensacionais a preço módico, trens de alta velocidade e longa distância e aquela sensação de segurança que nos permite andar madrugada afora sem o medo de que a polícia ou dois caras numa moto vão nos molestar de alguma forma ou eventualmente nos matar, como acontece todos os dias na nossa terra.


Jamais julgarei quem optar por viver as delícias que o desenvolvimento oferece. A nossa condição de nação periférica, apesar dos avanços, parece cada dia mais distantedaquilo que a Europa é, mesmo tendo ela perdido grande parte do que conquistou emqualidade de vida e direitos sociais após a reformulação internacional que levou ao neoliberalismo, sob as batutas amaldiçoadas de Reagan e Thatcher.


Nesta última viagem, no entanto, aconteceu uma coisa interessante e que, ainda que não tenha me dissuadido da tal vontade de voltar pra casa e dormir de conchinha, levantou a possibilidade de uma reflexão mais aprofundada sobre coisas interessantes e outras nem tanto, decorrentes principalmente das diferenças históricas na formação de nossos povos e países. Somos uma nação nova, construída sobre o massacre dos nossos originários, comércio e escravização de povos africanos pelos colonizadores europeus. Desse jeito, levamos muito tempo até que se constituísse uma sociedade estratificada como as européias, asiáticas e africanas, todas mais antigas que a nossa organização pós-colonial. 


Falando especificamente da Europa, enquanto ainda éramos sucursal, e mesmo depois da independência, eles já tinham repúblicas e, mesmo tendo queimado bruxas hipotéticas um pouco antes, já tinham uma produção teatral interessante, uma literatura consolidada, as catedrais (gosto muito delas, edifícios que vêem o tempo passar), uma arte que até hoje perdura em sua melhor forma, quase insuperável por eles mesmos e outras coisas. Não é demérito nenhum que não tivéssemos coisa semelhante aqui. Nossa civilização apontava em outra direção. Quem teve avanços construtivos comparáveis aos povos do velho mundo, como o caso dos Maias, Aztecas e Incas, foi ainda mais dizimado que os nossos originários Tupis, Guaranis e etc, talvez porque parecessemoferecer mais riscos ao modelo colonizador europeu. O resultado a gente conhece. Com as nossas riquezas, e que aqui no tempo da colonização nem tinham esse valor todo, eles construíram uma infraestrutura que nós ainda vamos levar muito tempo pra conseguir, se um dia conseguirmos.


O volume de concreto, ferro e pedras enterrado nos complexos sistemas de metrô de cada uma das cidades europeias supera em muito a maior parte das nossas cidades na superfície. Seus museus e palácios exibem, ao lado da arte financiada com o ouro da África e da América Latina, “curiosidades” roubadas de nossos povos originários. Sua alimentaçãoé em grande parte baseada na batata andina, que só chegou lá  do século XVI em diante e é tão peruana quanto Machu Picchu. Eles ainda nos devem o tomate, também americano, o arroz asiático, a cebola africana, o café, que é etíope de nascimento. E mesmo que as receitas de pato sejam muito antigas (uma vez vi na França um desfile de uma confraria dedicada ao pato e que começou no século XIII), o pato que eles usam hoje em dia pra fazer maigret de cannard ou cannard confit é descendente do nosso pato, descoberto em vida livre na América Latina quando eles chegaram aqui. Cairina moschata é o nome dele. Podem pesquisar.


Essa conversa toda ficaria bem melhor com cerveja belga, vinhos franceses ou portugueses, tapas espanhóis, embutidos alemães ou iguarias italianas. Talvez mais ainda com aipim na manteiga, baião de dois ou feijoada. Mas o que me motivou a escrever foi um sentimento que me persegue há tempos. Essa dívida da Europa com nossos países colonizados jamais vai ser paga.


A evolução nos meios de troca e o fato de eles terem saído na frente obviamente nos deixaram em condição desfavorável no modelo existente. Às nossas custas, sob exploração direta ou fornecendo commoditiesnum mercado internacional regulado por eles, transferimos pra lá o que nos falta aqui.


Por isso, só por isso, acho maravilhosa a ocupação daquelas cidades pomposas por africanos, asiáticos, latinos e todos os povos explorados do mundo. Aos poucos eles vão se inserindo e ocupando os dois lados dos balcões. É um processo lento, mas continuo. Tenho visto a evolução ao longo dos últimos 20 anos.


Não resolve. Mas faz descer do salto. Num tempo de tanta concentração de renda, a internacionalização do problema escancara pros donos do poder, ainda que sem o impacto das balsas cheias cruzando o Mediterrâneo, aquilo que era quase um segredo nosso.


Depois, se der, eu falo das coisas legais da viagem. 

Voltei! 


Rio de Janeiro, junho de 2025.




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