GEOMETRIA
- Leo Viana
- há 12 minutos
- 4 min de leitura

Formavam um trisal desde quando a palavra não tinha sido incorporada à língua corrente. E talvez nem se dessem conta disso, por serem unidos desde sempre.
A vida, para eles, tinha começado ao mesmo tempo. Chegaram ao prédio novo com as famílias quando ainda eram bebês e não conheciam a existência sem aquela proximidade. Identificaram-se desde as primeiras brincadeiras no playground, acompanhados das mães, que ainda gozavam suas licenças, tornaram-se grandesamigas e foram determinantes pra que os filhos seguissem o mesmo caminho.
A primeira creche, o jardim de infância, a alfabetização. Cada escola foi decidida em conjunto e havia quem achasse que eram irmãos, os três, apesar das fortes diferenças físicas. João, Camila e Patrícia eram como uma pessoa só, dividindo segredos e conquistas desde sempre. Um quase sentia o que o outro sentia. Filhos únicos de casais tão diferentes quanto amigos, foram desde muito cedo encaminhados para o mesmo curso livre de música, após uma manifestação quase simultânea de aptidão, observada em conjunto e em separado pelos pais.
Deu muito certo e chegaram ao fim do ensino médio sem se separarem quase nunca. Na universidade, tinham decidido continuar juntos. Após terem obtido a sofrida autorização das famílias, foram os três para uma universidade no interior de São Paulo, longe de casa e protegidos apenas pelo amor que os unia, uma amizade sem início e sem fim, estudar música.
Interessados em tudo que soava bonito, da música aborígene ao barroco e dos hipotéticos sons pré-colombianos ou asiáticos daantiguidade ao samba carioca, passando pelo jazz americano e pelos eruditos contemporâneos, formaram um trio de piano-bateria-contrabaixo que se tornaria sensação logo nos primeiros anos da faculdade.
Alugaram juntos o apartamento onde passariam os próximos anos. O triângulo amoroso se formou rápido. A descoberta - até um pouco tardia - da sexualidade chegou para os três ao mesmo tempo. E não havia ninguém a quem eles desejassem mais que uns aos outros.
A súbita notoriedade do trio musical, talvez mais que a atratividade física de cada um dos integrantes, fez despertar paixões. Na juventude, as paixões são parte da paisagem. A Camila com suas sardas e sua cabeleira ruiva, já tinha sido vítima de bullying no passado, ainda que jamais tenha sido influenciada por isso. Sentada ao piano, fazia hordas de jovens suspirarem. O Joãozinho, apelido carinhoso e inverossímil, era objeto de fantasiasrelativamente óbvias, além da sombra do racismo, sempre presente.
Contrabaixista muito competente e inventivo, parecia um jogador de basquete norte-americano, com seus 1,90 de altura, pele negra e musculatura saliente, mais herdada que cultivada, apesar dos exercícios que sempre fizeram juntos, desde crianças. A Patrícia era a baterista dos sonhos de meninos e meninas roqueiros, mas transitava com desenvoltura em todos os gêneros, alguns insuspeitos, como a música erudita e o samba. Filha de japoneses, ostentava o cabelo azul, mas sempre aberto a novas colorações, além de beleza e competência que hipnotizavam fãs e colegas.
O Fábio era aluno de guitarra e tornou-se amigo do Joãozinho nas aulas de harmonia, ministradas por um professor pouco querido entre colegas e estudantes. Camila e Patrícia cursavam em uma outra turma, inclusive rompendo o acordo de que cursariam as disciplinas comuns sempre juntos. Uma impossibilidade gerada porfalta de vagas em uma turma de contraponto levou as duas à separação forçada do Joãozinho e à readaptação de horários. Nada que nem minimamente abalasse a relação tripartite.
A aproximação do Fábio com o Joãozinho foi natural, resultado da obrigatoriedade de um exercício em dupla. O Fábio era fã do trio e ficou mais constrangido que contente com o primeiro contato. Admirava cada um dos três, temia não estar à altura de seu colega de dupla e sonhava, desde o primeiro concerto, tornar-se amigo da japonesinha da bateria. Não imaginava que as coisas aconteceriam daquele jeito. Levado pelo Joãozinho ao apartamento onde viviam para desenvolver o trabalho de harmonia, descobriu toda a história e apaixonou-se de vez pelos três.
A amizade foi bem recebida pelo trio, mas a cada vez maior aproximação do Fábio era vista com desconforto pelas meninas, mais ainda quando, mesmo timidamente, ele se insinuava para a Patrícia.
O próprio Joãozinho, responsável pela chegada do colega, não sabia direito como lidar com aquilo. Sempre preferiu a companhia das amigas/irmãs agora namoradas. Conheciam profundamente uns aos outros, e cada vez mais. O Fábio, no entanto, trazia algum frescor para a casa. Novas informações e perspectivas, visões de mundo e da música que não necessariamente eram as mesmas que os três cultivavam e desenvolviam juntos e há tanto tempo. Nada que ferisse de morte as convicções. Nenhuma posição muito contrária ou conflitante. Contribuições geralmente muito bem-vindas, aliás. O desconforto inicial foi vencido. O Fábio, após compreender o funcionamento do trio em todas as suas vertentes, pessoais e musicais, também entendeu o quanto de inconveniência havia no assédio à Patrícia.
Faltava um ano para a conclusão do curso de todos quando o Fábiofoi formalmente convidado a se incorporar ao grupo musical, após algumas experiências conjuntas e mesmo alguns festivais em que testaram a formação ou eventos em que acompanharam cantores e cantoras.
Surpreso, relutou um pouco. Mais por timidez que por falta de vontade, argumentou não se sentir à altura dos demais, mas aceitou ainda na primeira meia hora de conversa. Conteve com um riso discreto uma preocupação sobre a eventual confusão para um pedido de comida por aplicativo durante um ensaio.
Levou um pouco mais de tempo para que se juntasse ao grupo pessoal, adicionando mais um lado ao triângulo amoroso, mas aconteceu. E nunca houve problemas na escolha de comida.
Hoje, alguns anos depois, felizes e realizados, viajam o mundo em apresentações disputadas. Recentemente conheceram uma clarinetista francesa, de origem argelina, que propôs uma parceriamusical. No palco - e também nos bistrôs, após os dois concertos! - deu tudo muito certo. E ela está providenciando os documentos para uma temporada de seis meses no Brasil, hospedada com eles.
A casa, modular, tem quartos suficientes, além do estúdio para ensaios e gravações.
A aposta interna é que ela fica.
E a figura passa a ter cinco lados.
Rio de Janeiro, outubro de 2025
PS.: Confesso que, se eles verdadeiramente existissem, eu gostaria de ser amigo deles. Não sei se moraria na casa. Provavelmente não. Muita gente. Mas me parecem grandes pessoas!!
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