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Taiguara, um vento livre de voz que não morre



Noite dessas, batia um papo legal com amigos no botafoguense Bar do Hedinho, em Campos Elíseos (capital de Resende), e eis que de repente salta no ar a frase, já meio clichê: “Quando éramos jovens, éramos imortais”. Yuri e Caleb, embora bem mais jovens que eu, já ultrapassaram os limites – por pouco, é verdade - dessa fase da imortalidade, que segundo o nosso filosofar de boteco, está restrita à juventude. E assim como eles e como o Hedinho, eu também já fui imortal. Caramba, agora me veio uma imagem desagradável: o Merval Pereira, naquela idade, é um imortal. Credo! Mas deixemos pra lá o Merval e a Academia Brasileira de Letras, que nas costumeiras escorregadelas mantem entre seus imortais, alguns vampiros.


Quando eu fui imortal, cometi, lógico, algumas façanhas típicas do período. Uma delas: final de 1970. Eu fui com um pequeno grupo de amigos a uma eliminatória do Festival Internacional da Canção, no Maracãzinho. Era a etapa nacional do FIC. Foi uma noite empolgante e ficaram carimbadas na minha mente, a performance do Tony Tornado, com ‘BR-3’, de uma dupla muito admirada na época, Antônio Adolfo e Tibério Gaspar e da belíssima e romântica, ‘Universo no teu corpo’, do ótimo, Taiguara. Resumindo, ambas se classificaram para a final, que aconteceria num domingo mais à frente.


Terminada aquela noitada esfuziante, já era madrugada e nosso grupo de moradores de Nova Iguaçu, foi pegar o trem. Seguimos para a estação do Derby (ainda não existia a estação Maracanã). Àquela altura o movimento de trens era rarefeito e até rolou uma dúvida se a composição que vinha da Central (estação Dom Pedro II) pararia no Derby,


Roda de samba, ouca, na Spotify.


Ainda impregnados das emoções do caldeirão musical e com a impaciência típica da idade, resolvemos, por consenso, não esperar o trem. Decidimos caminhar até à Central. E seguimos pela via férrea. São uns poucos quilômetros de distância. Caso viesse alguma composição, tínhamos como nos afastar e seguir por outra linha, e eram muitas. Até que chegamos a um trecho em que a terra sumiu sob os dormentes. Ali os trilhos passam sobre um trecho da Avenida Francisco Bicalho ao lado do riacho ‘Trapicheiro’, deseducadamente chamado, de fedorento canal do mangue. Fomos pisando com cautela felina, dormente por dormente e vendo a uns dez metros ou mais de vertigem abaixo, a pista. Um e outro carro passando. Se viesse um trem seria um “não sei o quê”. Demos sorte. Afinal, éramos imortais e sem tempo de temer a morte. Umas centenas de metros depois chegamos à plataforma, e logo estávamos no trem rumo à Baixada.


A final nacional dias depois consagrou Tony Tornado que faturou o primeiro lugar com BR-3 e sacudiu, mais uma vez, o Maracanãzinho com seu vendaval dançante. Vi pela TV. Taiguara foi esculachado indo parar no oitavo lugar. Atrás até da meio-descompromissada “Eu Também quero Mocotó”, do ainda Jorge Bem e interpretada por Erlon Chaves e a sua Banda Veneno. (Erlon Chaves depois passaria por problemas relacionados à censura e racismo, mas aí já é outra história).


O tempo passou velozmente e eu já não possuía o verdor dos tempos em que éramos imortais, quando fui entrevistar o Taiguara. Se a memória não me ludibriou, acho que foi para a revista ‘Nosso Jeito’ editada pelos irmãos Eduardo e Enock Cavalcanti. O papo seria no escritório do artista, que ficava num prédio localizado na Rua Álvaro Alvim, próximo ao Teatro Rival, na Cinelândia. Entrei no elevador que pouco antes de fechar as portas recebeu mais um passageiro, justamente ele, Taiguara. Assim que chegamos no andar de destino, me apresentei e ele foi protocolarmente educado. Seguimos para sua sala.



Mulheres cantando muito nesta playlist do Youtube.



De cara eu quis saber o que sentira por ‘Universo no teu corpo’ ter ficado num cruel oitavo lugar naquele longínquo festival. Mas Taiguara já era outra pessoa. Radical, não usava mais jeans “símbolo do imperialismo”. Parecia um extremista de Esquerda meio desiludido com a vida, mas sonhando com uma realidade mais justas para sua gente. Respondeu que aquela canção não significava mais nada para ele, pois ao contrário dos versos iniciais, “Eu desisto, não existe essa manhã que eu perseguia”, existia sim essa manhã, que era o Socialismo.


Toda geração tem o tradutor das dores e perplexidades do seu tempo. Independente de outros grandes nomes da época, Taiguara era esse cantor das dores existenciais da minha geração. Era o seu nicho. Eu gostava. Teve mais de 80 composições vetadas pela censura da ditadura e ainda nos anos 1970 se autoexilou em Londres por dois anos. Natural de Montevidéu, filho de um maestro brasileiro com uma uruguaia cantora de Tango, o cantor e compositor Taiguara, foi definitivamente calado por um câncer, aos 50 anos. Muitos diriam: Poxa, tão jovem ainda. Jovem e, imortal. Basta ouvi-lo.

“O tempo passa e atravessa as avenidas / E o fruto cresce, pesa, enverga o velho pé E o vento forte quebra as telhas e vidraças / E o livro sábio deixa em branco o que não é Pode não ser essa mulher o que te falta / Pode não ser esse calor o que faz mal Pode não ser essa gravata o que sufoca / Ou essa falta de dinheiro que é fatal Vê como o fogo brando funde um ferro duro / Vê como o asfalto é teu jardim se você crer Que há um sol nascente avermelhando o céu escuro / Chamando os homens pro seu tempo e viver / E que as crianças cantem livres sobre os muros

E ensinem em sonho ao que não pode amar sem dor E que o passado abra os presentes pro futuro / Que não dormiu e preparou O amanhã é seu, o amanhã é seu, o amanhã é seu” (Que as crianças cantem livres sobre os muros – Taiguara)


 

Lindos sambas, na playlist do Youtube.




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