SAUDADE DO DESCONHECIDO
- Jorgito Sapia
- há 4 horas
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Nesse movimento de cuidar da saúde para enfrentar os setenta com galhardia e dignidade fui fazer uma consulta de rotina numa clínica oftalmológica. Tenho cá comigo que na conjuntura que estamos atravessando enxergar pouco colabora com a sanidade mental.
De fato, olhar para o que acontece nesse Congresso inimigo do povo ou para a cara de qualquer membro da família do ignominioso mor, portador de tornozeleira, provoca danos significativos na saúde mental de qualquer pessoa que, como eu, se julga minimamente normal.
Assim que entrei na clínica fiz os procedimentos protocolares, sentei-me na sala de espera junto a várias pessoas que aguardavam ser chamadas. Reparei, num cantinho, duas senhoras que scaneavam a sala, bisbilhotando cada movimento e cochichando, animadamente, sobre as descobertas realizadas no olhar de sobrevoo que realizavam.
Por meu lado, fazia o mesmo, mas, como acudi sozinho não tinha com quem fofocar sobre as primeiras impressões do local. Observei diversos pacientes com tampão ocular ou gaze oclusiva. Sabe-se lá por que imaginei uma convenção de piratas. Confesso que achei fraca a imagem e assim, com a velocidade da luz mudei o rumo da descoberta e pensei tratar-se da concentração dos foliões do bloco carnavalesco Glaucoma de Vista Alegre.
Ouvi meu nome sendo chamado no preciso momento em que deixei escapar um sorriso pela lembrança momesca. Fui conduzido a uma sala para realizar um exame de campo de visão. Me esforcei por acertar o tempo das luzes que pipocavam na tela. Finda a experiência pensei que Vista Alegre mesmo é participar da roda de Samba que Dorina comanda na Lona Cultural João Bosco desse bairro da zona da Leopoldina.
Vi, ao sair, que as moças sentadas no cantinho da sala continuavam seu animado conversê. Essa imagem me evocou a pensão do seu Alcides da Silveira Goes, localizada no bairro de Botafogo na rua Rodrigo de Brito, 9, que albergou entre 1951 e 1980 o Cantino da Fofoca, berço de uma roda de samba muito bem frequentada. Os irmãos Mical e Miúdo, Walter Alfaiate, -o magnata supremo da elegância moderna -, Mauro Duarte, Zorba Devagar e Paulinho da Viola entre muitos outros marcaram presença no local.
Ouvi muitas histórias do Cantinho da boca de muitos de seus frequentadores, mas conhecer mesmo não conheci. Sabe aquele samba do trio calafrio -Barbeirinho Do Jacarezinho, Luiz Grande e Marquinhos Diniz -: Você sabe o que é caviar? Pois é, sempre que me perguntar se conheci o Cantinho da Fofoca respondo na lata: "Nunca vi, nem conheço, eu só ouço falar.”
Aí é que bate mesmo uma saudade de um lugar que não conheço. Experiência recorrente, já senti saudade de cidades, de lugares que, claro, estimulam o desejo de conhecer, mas a sensação, para mim, é de saudade mesmo. No caso em questão essa saudade aumentou quando o Bloco Carnavalesco Maracangalha fez do lendário quintal seu enredo para o carnaval de 2006.
Bloco de carnaval e botequim tem histórias que se entrelaçam. Como sabemos o botequim é um estabelecimento comercial popular que serve bebidas, em sua maioria, alcoólicas, cervejas de marcas diversas que atendem pelo singelo nome de canela de pedreiro, capa branca, véu de noiva e cu de foca; e claro, cachaças das mais diversas procedências que a criatividade popular identifica por uma infinidade de sinônimos: abrideira, abençoada, canjebrina, refrigério da filosofia e por ai vai, acompanhadas de algum tira-gosto ou prato simples, o popular PF, feito geralmente numa cozinha de ínfimas dimensões, mas de coração enorme.
A imagem do boteco, do pé-sujo, da birosca, do bunda de fora, está associada à imagem da cidade do Rio de Janeiro. Se apresentam como “espaços-síntese” da cidade capazes de evocar uma multiplicidade de referências simbólicas que resultam da nossa qualidade de seres urbanos, isto é, do fato de - como diz Maria Alice Resende de Carvalho -, de sermos autores da nossa cidade, “construtores permanentes da sua significação e personalidade”.
A simbiose entre boteco, samba e carnaval tem papel importante na história da cidade e nas suas principais manifestações culturais. Carlos Sandroni em seu trabalho: Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), argumenta que o botequim foi responsável pela substituição dos lugares de consagração do samba que, no início do século, estavam vinculados às casas das tias baianas. O botequim, então, além de permitir uma maior circulação deste gênero musical, se encontra associado ao novo estilo de samba – caracterizado pelo uso de instrumentos de percussão - que tem sua origem no bairro carioca do Estácio de Sá, bairro que viu nascer em 1928 a Deixa Falar, primeira escola de samba que, curiosamente, como comenta Sérgio Cabral pai: “nunca foi escola. Foi na verdade, um bloco carnavalesco”.
Com o fim do Cantinho da Fofoca os sambistas que transitavam por Botafogo foram descobrindo outros lugares. O Samba de Fato, que ocupou um terreno na esquina da rua Assis Bueno com Arnaldo Quintela, - esquina onde concentra, desde 1985, o Bloco do Barbas. Bloco que resultou de uma sugestão feita pelo compositor Mauro Duarte – o Bolacha – frequentador do botequim com o mesmo nome do bloco aberto em 1981.
Alguns anos mais tarde sob o comando de Eduardo Galloti e Felipe Lima o bar e restaurante Mandrake abriu as portas para o samba e o samba puxou o bloco Concentra Mais Não Sai, inventado por Beth Carvalho e frequentado pela fina flor do samba da cidade e por muitos foliões que estavam, também, inventando seus carnavais nesse movimento de florescimento do Carnaval de rua da cidade.
Assim, boteco enquanto espaço cultural acolheu o Bloco de Segunda a Cobal de Botafogo; o mercadinho São José, no bairro de Laranjeiras, virou sede do Imprensa que eu Gamo; a Taberninha do bairro do Leme, foi ponto de encontro dos foliões que fundaram o bloco Meu Bem, Volto Já; o bar Jóia, no Jardim Botânico, sede do Suvaco de Cristo e o bar do Serginho, nas ladeiras do Bairro de Santa Teresa, é onde concentra o Bloco das Carmelitas, no Carnaval, e os foliões o ano inteiro.
E por falar em Botafogo, sugiro tomar uma canjebrina no Bar da Adelina, botequim localizado na rua Rodrigo de Brito 39, no coração do bairro. Quinta-feira é dia de encontrar os amigos e colocar o riso em dia. Ontem o pessoal bateu na trave, por uma diferencia de 12 horas perdeu a comemoração da entrada em cena da tornozeleira, mas, esse pessoal não dorme no ponto.
Parece que recebeu o santo do babalaô cubano Eulógio Gutierrez, babalaô com autoridade para praticar a adivinhação através da consulta a Ifá e marcaram uma roda de comemoração no sábado 19 de julho de 2025 e seguir em cortejo com o bloco Tornozeleira Gloriosa.
Esses eu vi, eu conheço e posso falar.
Inclusão Cultural É Também Inclusão Econômica
Quando falamos em inclusão, não se trata apenas de acesso ao consumo de cultura, mas também da possibilidade real de gerar renda com ela. Jovens de periferias, músicos independentes, produtores de cinema, designers e artistas do mundo inteiro encontram dificuldade para entrar nos mercados globais.
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