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SANTO...


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Ele era bom, mas não era santo. Alma boa, com quem se podia contar. E os amigos contavam. Emprestava até dinheiro, carro, discos, livros. Amigo, pasmem, das ex-mulheres. E eram três. Era o melhor pai pros filhos antes e depois da separação, longe delas. E as crianças reconheciam isso.  Nem são mais crianças. É o hábito. Filhos, ele diz, nunca crescem. O fato é que seguem reconhecendo o pai presente, preocupado, diligente. Já era assim antes, dizem.


Gente boa ele era mesmo, não restava dúvida. Não fosse assim e não teria casado com três amigas. A intervalos, claro, porém sem que elas brigassem entre elas ou com ele. Mas não era santo. Afinal, nenhum dos três casamentos durou muito, apesar dos filhos, um com cada uma. 

Ele conhecia os próprios defeitos. Nenhum era absolutamente inaceitável, ao menos à luz de seus próprios critérios de aceitabilidade. Provavelmente, no entanto, a soma deles foi o estopim para o fim formal dos relacionamentos. Não se sabe. Andréa, Marcia e Lívia, as três amigas na exata ordem dos casamentos e separações, nunca revelaram nada a respeito. 


Feministas, como todas as demais do grupo, saberiam articular e listaros motivos para explicar eventuais razões para os divórcios, caso quisessem fazê-lo . No entanto, limitavam-se a afirmar categoricamente que não era machismo ou abuso. A curiosidade reinava no grupo de amigos. Reuniam-se com relativa frequência desde os tempos da faculdade, a intimidade era muita e o assunto sempre acabava vindo à tona.Todos, homens, mulheres, amigos desde sempre ou agregados por casamento ou alguma outra afinidade com o grupo, gostariam imensamente de saber qual o segredo oculto do William, além do nome de príncipe ou personagem de histórias de herói. Ele desconversava. Dizia, a quem não conhecia a história, que preferia a versão traduzida de Guilherme Tell. Ninguém entendia no início até ele explicar que Guilherme era William em português, do mesmo jeito que Jacques é Santiago em francês. Pronto, o assunto descambava noutra direção e ninguém conseguia descobrir o tal segredo. As meninas não ajudavam. Muito amigas, evitavam falar sobre os motivos das separações e preferiam sempre louvar o grande companheiro e pai exemplar que ele tinha se tornado depois do divórcio. Um milagre, o William. 


Professor, se desdobrava entre um colégio de elite e um emprego público de 20 horas numa universidade pública. Querido entre alunos e colegas, havia casos extremos de quem fazia vestibular pra continuar sendo aluno dele. O professor William encantava com igual intensidade as alunas, os alunos, suas famílias e quem mais orbitasse a escola ou a universidade. Tinha um magnetismo pessoal inexplicável.


Havia quem o comparasse com o Vinícius de Moraes, outro casador compulsivo. Mas Vinícius era poeta maiúsculo, encantava fácil e eternizava o que dizia em letras de música ou poesias geniais que ainda estão aí e continuarão. As palavras do William eram efêmeras, ainda que sobre temas eternos. Raramente repetia uma aula, apesar do assunto não variar muito. A Geografia, em seus aspectos físicos, muda muito pouco. E era essa a área dele. Cabe a ressalva de que conseguia, sim, cativar alunos e alunas falando de acidentes geográficos, fenômenos sísmicos e climáticos, mas efetivamente não devia ser esse o assunto que o tornava atraente para as mulheres ou para as pessoastodas que não frequentavam as suas aulas. 


Definitivamente não era músico, poeta ou menestrel. Era inclusive desafinado e sua memória, que era absolutamente eficiente para o trabalho, garantindo a qualidade das aulas hipnóticas que dava aos alunos, era nula para decorar poesias ou textos românticos. Precisava se valer da criatividade e da simpatia, o que, indubitavelmente, funcionava.


Num dos encontros da turma, após a tradicional rodada inicial de caipirinhas e depois das piadas de sempre, já que alguns pedem com adoçante, outros pedem pra colocar um pouco de água, tudo em consonância com os índices aferidos nos exames, já que todo mundo beirava os 50. Pois bem, num dos encontros, alguém notou um improvável interesse do William, que vinha solteiro desde a separação da Lívia, que já fazia 15 anos, inclusive monitorado de perto pelo Alvinho, amigo mais próximo, que atestava, com veemência, o temporário, mas longo, celibato do Don Juan. Como eu dizia, alguém notou o surpreendente interesse do William na Juliana, também amiga antiga, bonita, bem resolvida, separada há algum tempo de um marido que nunca foi muito simpático ao grupo e a toda aquela intimidade invasiva. 


Todos observavam discretamente, conhecedores que eram dos métodos de conquista do amigo, que parecia não ter perdido o jeito, apesar do tempo. Não sabiam exatamente se a Juliana estava entrando na dele por inocência ou por interesse genuíno. De qualquer forma, não havia o que censurar numa relação entre pessoas daquela idade. Talvez as três ex-mulheres pudessem de alguma forma dissuadi-la da ideia, mas por quê? Não tinham, ao menos de maneira explicita, jamais revelado algum motivo radical ou intransponível que justificasse o afastamento delas de William. Aliás, afastamento mesmo nunca aconteceu. Separaram-se, mas seguiam frequentando os mesmos lugares, dividindo mesas e amizades como se nada houvesse se passado. 


No encontro seguinte, já era tarde. William e Juliana, amigos há muito tempo, já eram um casal. A delicadeza no trato recíproco e os olhares apaixonados não deixavam dúvidas sobre a dupla. Não houve comemorações efusivas, mas como se encontravam basicamente por hedonismo e amizade, queriam todos ser felizes na maior parte do tempo da vida. Especialmente quando estivessem juntos queriam – por que não?? - ser 100% felizes.

As três ex eram talvez as mais radiantes. Provavelmente seriam quatro, após algum tempo, a compartilhar o segredo de William, o sedutor.


Ao final de três anos de romance apaixonado, a separação veio, como das outras vezes. Sem choro, sem vela, sem sofrimento ou afastamento. Três anos. Era exatamente esse o tempo de duração dos três casamentos anteriores. Do último só não havia filho. E o intervalo do penúltimo pra cá durou muito tempo. 


A amizade continua. Estão todos mais velhos e com mais restrições alimentares, etílicas e boêmias. Isso não impede que se vejam e riam como sempre. Talvez algum dia ossegredos sejam revelados. Talvez alguém se encarregue de escrever algo sobre o conquistador.

Corre, à boca pequena, que as quatro ex-mulheres, cada vez mais amigas, reúnem-se secretamente para preparar um livro de memórias. 


Eu só escrevi a parte que me contaram. Também estou curioso. Me disseram que era bom, mas não era santo. Nem sei se ele existe. E muito mais não sei.

 

Rio de Janeiro, março de 2025.


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