Purgatório
As coisas já foram menos confusas. O que não quer dizer que tenham sido melhores antes, apesar do grande mérito que a simplicidade sempre tem. Até a idade média, por exemplo, não tinha esse negócio de purgatório. A igreja inventou isso porque, com o fim do feudalismo, e a consequente liberdade de um monte de gente, a base contribuinte diminuiu muito. Era céu ou inferno. Uma terceira via funcionaria pra atrair quem talvez já estivesse determinado e desiludido aguardando chamas e tridentes na eternidade. Não é de hoje que a humanidade tenta compensar as suas escolhas erradas com uma alternativa tendenciosa, um tipo de PSDB do Dória.
Quem discordar, pode reclamar com o Eric Hobsbawm, falecido – e no caso dele, prematuramente – aos 95 anos, em 2012. Pra quem acredita, tamanho o bem que fez à humanidade, deve estar aproveitando as delícias dos céus. Não tivesse feito mais nada e tivesse apenas escrito a Era dos Extremos e a História Social do Jazz e o mundo já estaria em dívida com ele. Pode reclamar também com outros historiadores. Aliás, quem primeiro levantou esse dado sobre a criação do purgatório nem foi o Hobsbawm. Foi o Jacques Le Goff, historiador francês e provavelmente amigo do Hobs.
Familia Mario Lago, música de primeira, na playlist da Spotify.
Dante Alighieri deu forma e corpo a essa terceira via, na Divina Comédia. Após vencidos os sete círculos, que correspondem aos sete pecados capitais, o ex-vivente pode acessar o céu, numa espécie de supletivo (pra quem lembra como era isso), que compensaria as reprovações anteriores.
Os pecados a serem superados, ao contrário da lógica da escola e mesmo do inferno (para o qual o Dante também elaborou um organograma de funcionamento), vão do mais difícil para o mais fácil, ou seja, o candidato ao paraíso se esfola todo em física quântica antes de aprender as quatro operações, numa comparação muito chinfrim, reconheço.
Porque todo esse mimimi místico pra inicio de conversa? Explico:
Essas praticamente desnecessárias palavras que escrevo serão lidas no dia mais importante da nossa história republicana, se considerados alguns parâmetros. Vivemos momentos muito importantes antes, claro. Em nenhum deles, no entanto, estivemos diante, como povo, da possibilidade do auto-extermínio. Não é um exagero retórico. Um povo se caracteriza por sua cultura, pelas coisas que construiu junto ao longo de sua história. Se, por um lado, há também a definição de que um povo pode se caracterizar por “viver sob o mesmo governo”, é uma opção minha preferir a que leva em consideração os elementos culturais. Longe de mim, por formação cristã, marxista e humanista, pensar em homogeneidade cultural ou étnica, mais ainda tendo sido apresentado ao mundo a partir da miscelânea cultural chamada Brasil. Mas como eu ia dizendo, nunca estivemos, como povo, tão próximos de, num equívoco potencial, nos destruirmos como tal.
Conversa sobre música, política e sociedade, com Edgard Duvivier, na revista Criativos!
Não vai aqui nenhuma ilusão quanto à nossa condição moral, quanto a valores éticos pretensamente cultivados por nossas elites ou classes médias que, de um dia para o outro passaram a defensoras intransigentes da moral e dos bons costumes, mas normalmente se pautaram pelo coronelismo cotidiano e pela lógica do “sabe com quem está falando?”, mesmo diante das leis e do regramento jurídico estabelecido em qualquer nível. E aí se incluem os industriais, empreiteiros, concessionários dos meios de comunicação ou donos de jornais e revistas, grandes comerciantes, etc, etc, etc. Até mesmo servidores públicos mais bem remunerados, nos altos cargos do executivo, legislativo ou judiciário em muitos casos arvoraram-se no direito de estar acima do que valia para a plebe. Enfim, fomos historicamente um povo dividido em castas não assumidas. Nada que o velho Marx não tivesse escrito antes. Ainda assim fomos, ao longo da nossa nem tão longa história, da colônia à República, um povo em construção, com uma série de características que nos uniam.
Do sangue misto de povos originários com portugueses e africanos, mais os europeus e asiáticos vindos depois, criamos uma sociedade desigual e cruel, mas paradoxalmente unida por laços culturais que ninguém explica direito. Ricos e pobres comem churrasco e feijoada, vão à praia e às cachoeiras, frequentam igrejas, cartomantes e babalorixás/yalorixás, jogam pelada em clubes, campinhos e areais Brasil afora. Isso sem falar em blocos e escolas de samba, estádios de futebol, feiras livres, bares, shows ao ar livre. Ricos e pobres misturam-se na torcida pelo clube do coração, abraçam-se nas festas de réveillon.
E é essa estranha amálgama que está (estaria, ao menos…) a um passo da quebra definitiva.
Se é claro que as pessoas capazes de sufragar o projeto de sociedade apresentado pelo candidato do discurso “Deus, Pátria e etc” são parte legítima, como nós, do que chamamos “povo brasileiro”, também é fato que esse mesmo projeto contempla, no roteiro aprimorado ao longo dos últimos quatro anos e apresentado agora com requintes de cinema de autor, detalhes muito sórdidos, capazes de envergonhar roteiristas tidos como radicais.
Música de Bar e Boteco, na playlist da Spotify.
Prevê por exemplo, conforme fica claro nos discursos, forte investimento no fim da diversidade cultural, condenada definitivamente a servir a um determinado modelo de produção, capaz de satisfazer exemplarmente a demanda da “família cristã” idealizada nesse reich tupiniquim.
Também vem no pacote a continuação da catástrofe ambiental, como sabemos e temos visto. Fomos, historicamente, meio acostumados à mentira, é verdade. Não à toa, se considerarmos que a mentira foi fundamental em momentos cruciais da história. A dor de barriga e a mula montada por D. Pedro I não teriam a necessária grandeza pra fazer parte da história oficial da independência, os africanos escravizados precisaram mentir muitas vezes pra salvar a própria pele e as dos seus queridos, sem o quê eu muito provavelmente não estaria aqui pra escrever. Mas o nível de mentira a que se chegou com a ascensão do atual projeto é inédito. Nível monumental no que se refere especificamente à Amazônia e à proteção da natureza, um de nossos maiores ativos. Ele nega descaradamente o desmatamento e as queimadas ao mesmo tempo em que avançamos perigosamente rumo ao “ponto sem retorno”, em que a floresta não mais conseguiria se recuperar, sob o testemunho diuturno dos satélites do mundo todo, dos povos originários acuados pelo garimpo e por um agronegócio irresponsável. E da humanidade toda, incrédula.
Nem vou descer ao submundo das rachadinhas e da compra de imóveis como quem compra tomates na feira, inclusive com o detalhe do dinheiro trocado. Não precisa.
Do mesmo modo, não vou repisar a realidade de milhões que voltaram a sentir fome após algum tempo de bonança. E justamente quando o tal agro tem as maiores colheitas de todos os tempos, destinadas a gerar divisas para seus donos e não comida para a nossa gente.
Samba muito bom, com grupo Tempero Carioca, no Youtube.
E o tal projeto saiu das urnas no último dia 02 de outubro com uma renovada capacidade de se perpetuar, ao eleger representantes fortemente alinhados com essa descaracterização do povo brasileiro, com a destruição da identidade construída ao longo dos anos, na medida em que sodomiza as universidades, militariza a escola fundamental e média, persegue as diferenças e institucionaliza a barbárie em diversos níveis, ao propor o acabrunhamento do judiciário, que sucumbiria ante às numerosas novas indicações igualmente alinhadas, como já foi feito com a Procuradoria Geral.
Retrocedemos à idade média inclusive no que se refere ao binarismo da escolha, que voltou a uma era pré-purgatório. Do mesmo jeito que antes do Dante, estamos divididos em uma aparentemente simples decisão entre o bem e o mal, com o mal muito bem caracterizado, apostando em nos destruir como civilização e propondo a emergência de outra, composta por “eleitos”, não no sentido da eleição propriamente dita, mas com a conotação mística dos “escolhidos” de algum senhor que eles idolatram, mas que parece passar muito longe daquele que é referência para a maioria das religiões, protagonista da ideia de bondade e amor, avesso ao modelo tiro, porrada e bomba alardeado por essa gente de amarelo que tem nos atormentado de uns tempos pra cá.
O que se apresenta pra nós agora é a possibilidade, medieval que seja, de escolher ao menos a criação de um purgatório. E só um dos lados acena com essa opção. Não será fácil e nem será o céu direto, mas manter o caminho que trilhamos em 2018 nos levará diretamente às caldeiras do diabo. Só nos restaria escolher, com base em alguma fé, se o inferno seria literal ou figurado.
A saída, mais lenta do que desejaríamos (afinal estamos com o pé no inferno...) mas única e decisiva, é votar 13! Eles irão nos infernizar por um tempo, claro, mas lembrem-se que começa da parte mais difícil. E nisso, somos melhores!!
Lula lá!
Rio de Janeiro, outubro de 2022.
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