PARIS, por Sylvia Bandeira
foto: Antônio Guerreiro
A menina, quase adolescente, vivia em Paris com os pais e irmão. Ela gostava de explorar pelo lado de fora o prédio onde morava. Circundava toda a extensão do apartamento de mansarda, de pé- direito alto, equilibrando-se numa estreita platibanda enquanto se apoiava nos parapeitos de janelas e paredes que atravessava no malabarismo irresponsável do jovem que se crê eterno e brinca com o perigo.
Seu maior desejo sempre fora voar. Um dia se aventurou até o apartamento da vizinha que estava na cozinha e, num francês impecável, perguntou as horas. A vizinha respondeu tranquilamente, sem esboçar a menor surpresa com a menina equilibrista, e voltou aos seus afazeres.
Em outro, surpreendeu o irmão que tinha aulas de francês com Mademoiselle Ritère. Ele olhou para a irmã assustado enquanto a professora apenas sorria, alheia ao risco que a menina corria. Ela se cansou da brincadeira.
Paris ficou na lembrança como uma cidade deslumbrante e, ao mesmo tempo, sombria, cheia de brumas e tempestades, para a brasileira inquieta que estava no início da adolescência.
Odiava o colégio de freiras severas, que não entendiam seu jeito de ser e no boletim escreviam “trop fantaisiste, ne fait rien et se perfume.”
E ela vivia no mundo da fantasia, não gostava de estudar e adorava se perfumar...
O pai colocava mil vezes na vitrola a música “Catarina”, na voz do Perry Como, para toda a família escutar, e a mãe desconfiava que ele estivesse tendo um caso. Aos domingos, ele levava a família para passear e, à certa altura, cumprida a obrigação, avisava que ia comprar pão e só voltava altas horas da madrugada. Vinha sempre sem o pão.
Na liberdade aprisionada que vivia, a menina explorava Paris e um dia foi patinar no gelo no Palais de Glace, no Champs-Elysées. Insegura ainda e prestes a cair, foi salva por um homem alto e elegante. Continuaram dando voltas pelo estádio de mãos dadas e ela se sentiu segura na companhia daquele moço.
Poderia ser seu pai, e logo descobriu que ele era brasileiro também! Trocaram telefone e ele passou a ligar para sua casa e falar com sua mãe. Perguntava pela “noivinha” o que no entender da menina era muito estranho, ela absolutamente não o enxergava assim. A mãe um dia convidou-o para lanchar em casa.
Sabíamos que era casado com uma francesa muito mais velha e vinha de conhecida e tradicional família carioca. Veio trazendo caixa de chocolates para a menina, e ficaram os três conversando. Pediu para a mãe se poderia tirá-la para dançar ao som de “Elle était si jolie” na voz do Alain Barrière, que tocava na vitrola. A menina que tinha apenas doze anos e estava de meias brancas três quartos e saia kilt pregueada, via, pelo espelho do corredor, aquele homem já na casa dos trinta e tantos, tentando juntar seu rosto ao dela, sem saber o que fazer. Terminada a música, ela fez um sinal para mãe com os olhos que não estava gostando nada da brincadeira.
A mãe não sabia como agir, e a filha deu uma desculpa que precisava estudar. Foi difícil para a menina entender que a mãe era mais infantil do que ela e que não percebera o estranho de toda aquela situação.
A menina descobriu Les fleurs du mal, de Charles Baudelaire, belo livro com ilustrações, na biblioteca do pai, e passava horas olhando as imagens com a sensação de estar fazendo algo proibido. Os poemas não eram tão explícitos quanto as gravuras, e ela tentava desvendar os segredos daquele mundo pecaminoso.
Uma vez, para calar a insistência do irmão, a mãe aceitou comprar um coelho de verdade, mas o ataque do pai, que evitava pisar nos dejetos em forma de bolinhas espalhados pelo apartamento, obrigou-a a devolvê-lo. Foi logo substituído por uma espingarda de chumbinho que o ocupou por um tempo, abatendo pombos que, para o grande desprazer da insuportável concierge, caíam fulminados no pátio interno do prédio. Pombos que fizeram parte de alguns deliciosos almocinhos preparados pela espanhola Bernadette, dos grandes olhos azuis e que gostava de relatar para a menina o motivo das noites mal dormidas.
Histórias dos diversos namorados aguçavam mais ainda sua juvenil curiosidade pelas coisas da vida das quais sabia tão pouco.
Depois do coelho, a mãe um dia chegou em casa com um monte de passarinhos multicoloridos, que em poucos dias foram tombando mortos, um a um, à medida em que a tinta que os tornara tão vibrantes ia desbotando. Mas nenhum desses animais domésticos superou Cricor, o feroz poodle, de quem ninguém podia se aproximar quando se aboletava debaixo da mesa da sala de jantar, seu quartel-general, agarrado a algum sapato ou objeto de estimação de algum membro da família ou convidado.
A gota d’água aconteceu na noite em que os pais recebiam para um coquetel: na hora de buscar os casacos dos convidados que ficavam sobre a cama do quarto do casal, lá estava Cricor, saboreando um casaco de vison! Foi difícil distraí-lo e surrupiar-lhe o casaco antes que o estrago se tornasse irreversível. Também tiveram que se desfazer do cão.
A menina se refugiava na leitura e devorava os clássicos, sentia-se Le petit chose do Alphonse Daudet, queria encontrar o índio sensual do O guarani do José de Alencar, ser a “La princesse de Clèves” de Mme. de La Fayette, e passar por portões largos e abertos, mas percebia a estreiteza dos amores impossíveis entre Alissa e Jérôme em La porte étroite do André Gide, que narrava de forma sutil uma história de homossexualismo.
Os amigos do pai se espantavam com a escolha de livros que ele indicava para a filha, mas ela entendia as histórias dentro de sua pequena experiência e não percebia o motivo de espanto. Gostava de ouvir Françoise Hardy cantar “Touts les garçons et les filles”, sobre os jovens que iam pelas ruas de mãos dadas, e ia sem nenhum menino para segurar sua mão ao assistir West Side Story, filme musical que contava a história de amor entre um rapaz e uma moça que, por laços familiares, pertenciam a gangues rivais, uma adaptação do Romeu e Julieta, de Shakespeare, com uma trilha sonora deslumbrante do Leonard Bernstein e letras do Stephen Sondheim. Ficou anos em cartaz em plena Champs-Elysées. E a menina sabia todas as letras de cor e as dançava ao som da vitrola, tentando imitar a Natalie Wood em I Feel Pretty. Foi uma meia dúzia de vezes ver o filme e chorou em todas, inconformada com a morte de Tony. Sonhava sair do pesadelo que era sua jovem vida.
A beleza da Cidade Luz não correspondia à cidade interna da menina! Ela não entendia a rigidez do colégio nem a angústia da mãe, que a fazia de confidente quando ela ainda desconhecia tanto da vida, e o pai que ameaçava tirá-la do colégio caso ela não conseguisse boas notas. Recebeu o Prix de l´Amitié, prêmio de Amizade por unanimidade, e primeiro lugar em inglês (quando foi para Canberra tirou o primeiro lugar em francês como representante de seu colégio e de toda a cidade). Sem nenhum mérito, e ela sabia.
Era boa em redação nos idiomas que dominava, no resto passava raspando, e como tinha perdido dois anos fundamentais em matemática, tirava péssimas notas e não entendia nada.
Morava no 16ème arrondissement, perto do Trocadéro, de onde se vê a Torre Eiffel ao fundo, e, no meio de estátuas e de todos aqueles monumentos históricos, adorava andar de patins e descer rampas íngremes com o irmão e outras crianças; visitar o Musée de L`Homme, que ficava ao lado, e observar o feto mumificado envolta em mil questionamentos nunca satisfeitos, além de ter acesso de riso durante a peça Galileu, Galilei, de Brecht, que fora assistir por exigência do colégio.
A mãe se distraía costurando vestidos para a filha, que ia de capa de chuva, nua por baixo, visitar os filhos brasileiros de um diplomata colega do pai, amigos do irmão e como ele, pouco mais novos que ela, que já tinha doze anos. De alguma forma queria chamar a atenção e, nesse dia, foi flagrada pela babá dos meninos enquanto abria e fechava a capa diante do espanto curioso dos meninos.
A mãe um dia levou a menina para ver o filme Fedra, de Racine, em versão moderna, dirigido por Jules Dassin, com Melina Mercouri, Raf Vallone e Anthony Perkins. Era a mais jovem no cinema, a mãe perguntava a todo instante “quer ir embora?”, e ela, fascinada com a tragédia do filho que se apaixona pela mulher do pai, negava qualquer possibilidade de sair antes do final.
Em Paris, conheceu Rubem Braga num jantar oferecido por seus pais. A menina sempre fazia as honras da casa, conversando e servindo drinques. No dia seguinte o pai entra no seu quarto e, todo orgulhoso disse: “Minha filha, você recebeu um buquê de rosas com um cartão manuscrito do Rubem Braga de agradecimento! Ele mandou para você, e não para sua mãe, a dona da casa, sabe lá o que é isso?”.
Décadas depois, a mulher adulta reencontrou várias vezes o escritor e cronista na casa da atriz Tônia Carrero. E a cada vez eles rememoravam ter sido ele responsável pelo seu primeiro buquê de flores.
E foi nesse caleidoscópio de informações díspares que a menina continuou por muito tempo caminhando pelos telhados mundo a fora.
Sylvia Bandeira
( Este trecho faz parte do livro "Mamãe Costura e Esta Noite Vou te Ver" , lançado pela autora em 2013.
Sylvia Bandeira é atriz, escritora e produtora.
Trabalhou em dezenas de produçoes de excelência entre Cinema, Teatro e Televisão.
Destaques para os filme "República dos Assassinos", de Miguel Faria Jr (1978) e "Bar Esperança", de 1983 (ganhou o prêmio Kikito, como melhor atriz coadjuvante).
Participou de várias novelas e minisseries, como "Um Sonho a Mais", da TV Globo, onde foi protagonista.
No teatro um de seus trabalhos mais festejados foi "Marlene Dietrich - As Pernas do Século", onde venceu prêmio Heloneida Studart e foi indicada como melhor atriz de teatro.
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