Onde estamos e para onde vamos: Antropocentrismo, Biocentrismo e Etnocentrismo?

As culturas originĂĄrias tinham uma ligação prĂłxima Ă natureza. Havia uma dependĂȘncia do mundo natural, o que levava Ă busca de se conhecer bem o meio em que se vivia para poder sobreviver de forma equilibrada com rios, plantas, animais ou estaçÔes do ano.
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Muitos chegavam a conhecer com precisĂŁo as Ă©pocas de chuvas ou estiagens para ajustar as Ă©pocas de suas plantaçÔes, por exemplo, ou entender os astros que serviam de base para navegaçÔes ou outros deslocamentos. Esses sĂŁo alguns aspectos da intrincada vida de quem precisava conhecer a fundo os elementos naturais e suas influĂȘncias para que a sobrevivĂȘncia pudesse ocorrer.
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Na medida em que a humanidade evoluiu (ou involuiu em muitos sentidos), essa ligação com o mundo natural tornou-se tĂȘnue e as vezes abstrata. Em muitos perĂodos da histĂłria, a natureza passou a ser vista como mera fonte de recursos para saciar desejos crescentes da humanidade, intensificando-se exponencialmente com a advento da Revolução Industrial.
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Essa tendĂȘncia, no entanto, teve seu inĂcio bem antes da Revolução Industrial, com o inĂcio do pensamento cientĂfico que se descolou da natureza, tendo sido predominante na Ă©poca da Antiguidade.
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Pensadores como Francis Bacon, no sĂ©culo XVI, pai do mĂ©todo empĂrico na ciĂȘncia, baseava o avanço civilizatĂłrio no domĂnio da natureza.
Usava palavras como âdomarâ quando se referia a forças da natureza como rios, tempestades ou outros fenĂŽmenos naturais. A natureza existia para saciar os desejos humanos e por isso deveria ser âescravizadaâ, âreduzida Ă obediĂȘnciaâ e cabia aos cientistas extrair dela âsob tortura, todos os seus segredosâ.
Segundo Isabel Cristina de Moura Carvalho, essa atitude assemelha-se à inquisição e à caça às bruxas, que levou tantas mulheres à morte, justo àquelas conhecidas por guardarem segredos da natureza.
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Um sĂ©culo depois, XVII, outro filĂłsofo influenciou o pensamento cientĂfico de sua Ă©poca e suas ideias perduraram por muitos sĂ©culos: RenĂ©e Descartes. Em essĂȘncia, para ele a natureza funcionava como uma mĂĄquina e cada parte deveria ser conhecida para que se pudesse extrair dela o que a humanidade necessitava. Essa linha de pensamento preponderou atĂ© o sĂ©culo XIX, com resquĂcios que sobrevivem atĂ© os dias de hoje, talvez nĂŁo tanto no mundo cientĂfico, mas entre aqueles que escolhem prĂĄticas insustentĂĄveis para lidarem com o mundo natural.
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A acumulação de bens, tĂŁo incentivada pelo âcapitalismo selvagemâ, intensifica essa conduta, especialmente apĂłs a industrialização de bens em sĂ©rie, que acabou por produzir quantidades desproporcionais Ă s necessidades humanas.
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Se ao menos houvesse equidade na distribuição do que Ă© produzido seria menos grave. Mas a acumulação nas mĂŁos de poucos tem se agravado em todo o mundo e o Brasil ranqueia entre os piores paĂses, mesmo sendo a 8ÂȘ economia do planeta.
Esse ponto foi reforçado em um estudo recente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento EconĂŽmico (OCDE), que desvendou uma triste realidade. Os 10%mais pobres do Brasil levarĂŁo 9 geraçÔes para chegarem Ă classe mĂ©dia, considerando-se aspectos como renda, educação, saĂșde e trabalho. Isso equivale a 180 anos! Ou seja, essa realidade Ă© cruel e soa como imutĂĄvel, caso o modelo de desenvolvimento continue a favorecer os jĂĄ tĂŁo privilegiados e a ignorar os que mais precisam.
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A evolução da Terra se deu em eras glaciais, cada uma levando bilhÔes ou milhÔes de anos para mudar aspectos que influenciaram o surgimento e desaparecimentos de espécies e ecossistemas. Tudo parecia lento, mas as mudanças acabaram por favorecer o surgimento de uma infinidade de espécies, inclusive a nossa, Homo sapiens, que demorou muito a surgir na face da Terra.
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Algumas metĂĄforas matemĂĄticas comparam a existĂȘncia do planeta a um dia de 24 horas. A aparição do ser humano se daria no Ășltimo minuto antes da meia noite e em imensa parte de nossa existĂȘncia Ă©ramos nĂŽmades coletores e caçadores, atĂ© desenvolvermos a agricultura e a domesticação de animais, que permitiu que nos estabelecĂȘssemos em locais especĂficos em agrupamentos maiores.
A expectativa de vida era curta, e assim o nĂșmero que habitantes nĂŁo ameaçava as demandas sobre os recursos naturais. Outro cĂĄlculo tambĂ©m com base em 24 horas, compara os Ășltimos 500 anos. Percebe-se que quanto mais recente, mais rapidamente as mudanças ocorrem. Um bom exemplo Ă© o crescimento populacional.
Com o avanço da medicina e de outros campos da ciĂȘncia, as pessoas vivem cada vez mais, o que permitiu que a população mundial dobrasse em menos de 50 anos. Quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1970, o Hino da Seleção cantava: "90 milhĂ”es em ação, Pra frente Brasil, Salve a Seleção!". Hoje em 2024, somos mais de 205 milhĂ”es de brasileiros.
O que sĂŁo 50 anos quando comparados Ă s eras planetĂĄrias? Nem um piscar de olhos, mas o impacto da explosĂŁo demogrĂĄfica Ă© imenso. SĂŁo mais e mais recursos naturais retirados para diversos propĂłsitos e mais e mais lixo e outras externalidades deixadas pelas pegadas humanas.
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Essa forma de vida, centrada na humanidade passou a ser chamada de Antropoceno, primeira nomenclatura ditada por posturas humanas e nĂŁo mais por fenĂŽmenos naturais. Ao se colocar no centro das decisĂ”es e demandas, o ser humano deixa de levar em conta a natureza com toda sua riqueza. NĂŁo percebe sua finitude, tratando-a como fonte inesgotĂĄvel de recursos e o desequilĂbrio tem sido cada vez mais desastroso.
Seria interessante trazer de volta Bacon e Descartes para que vissem a repercussão de seus pensamentos colocados em pråtica no mais alto estilo após alguns séculos. Inteligentes como eram, seus sonhos talvez se tornassem pesadelos e quem sabe quisessem promover um despertar coletivo? Os efeitos das pråticas que defendiam ainda de tornaram mais graves com a aceleração da tecnologia, que muitas vezes é usada para fins que levam à insustentabilidade.
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Alguns resultados desse modelo que não leva em conta a natureza como valor a ser protegido, são hoje evidenciados com os efeitos das mudanças climåticas, a exemplo de estiagens, enchentes, deslizamentos, perda de biodiversidade e degradação ambiental. E são as camadas menos favorecidas as mais afetadas pelas tragédias climåticas. São elas, em geral, que vivem em zonas de grande risco, por não terem recursos financeiros para se mudar e buscar melhores condiçÔes de vida.
Ou seja, nosso modelo civilizatĂłrio Ă© cruel! O ser humano se colocou no centro das escolhas e esqueceu-se de levar consigo valores que poderiam amenizar os estragos que ele prĂłprio vem causando. E sĂŁo os seres humanos com poder de decisĂŁo os que mais tĂȘm como contribuir para mudanças justas e Ă©ticas que levem em conta todos e nĂŁo apenas alguns.
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Existem tendĂȘncias de pensamento que defendem o Biocentrismo, cuja ideia central Ă©Â a valorização da natureza em sua grandeza e complexidade. Defende o valor da existĂȘncia de todos os seres vivos em detrimento do Antropocentrismo, que coloca o ser humano no centro. A ideia Ă© bela, mas as decisĂ”es que determinam o destino planetĂĄrio estĂŁo nas mĂŁos dos seres humanos e nĂŁo de outras espĂ©cies, o que dificulta que esses valores preponderem.
Existem, ainda, aqueles que nos lembram de nossa conexĂŁo com a natureza, como o recĂ©m-empossado na Academia de Letras, Ailton Krenak, quando afirma: âA gente só existe porque a Terra deixa a gente viver. Ela dĂĄ vida pra gente. NĂŁo tem outra coisa que dĂĄ vida. Ă por isso que a gente chama ela de MĂŁe Terra."
Krenak nos remete a um outro movimento que tambĂ©m tem sido defendido por pensadores que buscam conhecimentos ancestrais das populaçÔes que vivem em contato com o mundo natural: o Etnocentrismo. De fato, quem convive com populaçÔes indĂgenas, aborĂgenes ou atĂ© aquelas com princĂpios budistas (considerando o Budismo como filosofia e nĂŁo religiĂŁo), cuja ligação com a natureza Ă© estreita, se transformam e se veem em caminhos sem volta.
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Isso porque a civilização predominante, baseada no Antropocentrismo, deixa de fazer sentido quando hĂĄ a percepção de nossa essĂȘncia natureza. A vida passa a ser percebida com outra dimensĂŁo de respeito, celebração, admiração, aprendizado e humildade.
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Seja qual âismoâ se escolha, nossa ligação com a natureza tem como ser um caminho de mudança profunda e Ă© esse o fator que me atrai em todos os movimentos que colocam o ser humano em seu devido lugar.
Somos importantes sim, mas sem a natureza nada seremos. E, nossa sobrevivĂȘncia nesse planeta depende desse despertar.
N.R.
Suzana Padua é presidente do Instituto IPE, uma das maiores instituiçÔes ecológicas do Brasil, premiada e reconhecida internacionalmente.
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