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LEGISTA

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A surpresa das pessoas com a profissão da Carlinha já tinha virado uma piada interna no grupo de amigas. Mulher bonita, atlética, altiva e bem resolvida do alto dos seus escassos 1,50m de altura e surpreendentes quarenta anos bem vividos, tinha dificuldadepra explicar que era médica legista e passava a maior parte de seu tempo mexendo em cadáveres que chegavam geralmente em mau estado, fossem vítimas de acidentes, assassinatos ou já chegassem, coitados, em avançado estado de decomposição.


Muitos pretendentes dos aplicativos de encontros em que se inscrevera escaparam da mocinha ao descobrir seu ofício, estômagos fracos que eram.  Aos que insistiam, ela se obrigava a explicar detalhadamente a opção profissional, diante de infinitos questionamentos. Contava que sempre quis ser médica, esforçou-se pra entrar na universidade pública, foi aluna brilhante, comprometida com os ideais da profissão, exemplo de colega que ajudava – e ainda ajuda - a quem tinha ou tem mais dificuldade, a melhor amiga de metade da turma. Na residência médica, indicada pelos professores,interessados na formação de profissionais de alto gabarito, foi parar na oncologia pediátrica.


E foi outra vez o orgulho da turma, participou de projetos de pesquisa de grandecomplexidade e alcance, além de ter se destacado no atendimento humanizado às crianças. Sua fraqueza, aparentemente a única, era o sofrimento dos pacientes. E o das crianças, em especial, fez com ela escondesse, durante todo o período da residência, o quanto sofreu. Mas foi calada e contida que se tornou uma joia da medicina, indicada e solicitada por hospitais de renome e universidades, a partir das observações e do acompanhamento de seus professores, maravilhados pela qualidade da profissional que haviam formado.  


O conflito interno, no entanto, com a exposição diária ao sofrimento de crianças, permanecia.  Assim, optou por ficar perto de casa, onde podia se recuperar melhor do estresse diário e dava plantões num hospital público e outro privado. A proximidade da família e dos amigos não foi o suficiente. Em três anos desistiu definitivamente da oncologia pediátrica e abraçou a medicina legal. Não se imaginava mais vendo o sofrimento de quem quer que fosse. Não importava mais ser criança, adulto ou idoso. Tinha chegado ao limite. Imaginava prestar serviço, contribuir com sua atividade e seu conhecimento para a minimização do sofrimento, o combate às doenças, a obtenção da cura e normalização da vida das pessoas, no caso dela crianças “com uma vida inteira pela frente”, como se convencionou dizer.


Se é verdade que realmente foi possível ajudar diversas crianças e suas famílias, também é verdade que viu várias delas morrerem sob seus cuidados, não reagindo como previsto aos procedimentos que prescrevia com atenção, cuidado e conhecimento científico apurado. Entendia cada morte como uma derrota. E especificamente nos casos da oncologia, cada perda era geralmente antecedida por muita dor e sofrimento, o que a destruía um pouco a cada dia.


Um dia tomou a decisão e comunicou aos superiores o caráter irrevogável da coisa. Não foram poucos os que tentaram demovê-la da ideia, mas o que tinha de pequena e inteligente a Carlinha tinha de decidida. Saiu meio sem rumo, correndo mesmo o risco de uma demissão por abandono de trabalho. Logo ela, a mais brilhante aquisição recente de um Estado que evitava contratar e que ia aos poucos deixando erodir o impressionante patrimônio físico e cientifico da saúde pública, construído ao longo dos anos, em tempos mais nacionalistas, sem o falso patriotismo contemporâneo. 


Mas a Carlinha era osso duro de roer, madeira que cupim não rói. Tinha sido monitora de Anatomia, a disciplina que assusta os novatos na Faculdade de Medicina. Uma colega comentou, com certo nojo, que a Polícia Civil tinha um concurso com inscrições abertas para médico legista, especificamente para a necropsia. A informação ficoumartelando na cabeça. Ela mesma, no entanto, quase não conseguia conter o riso ao se imaginar policial com aquele metro e meio que ostentava. Só leu o edital por desencargo de consciência. E foi a leitura que revelou que não havia limitação de altura para o concurso, apesar da necessidade de teste de capacidade física. 


Essa era a parte mais fácil. Aos 30 anos, mantinha a atividade física regular, nadava e corria quase todos os dias. A capacidade intelectual nunca deixou dúvida. Assim, antes que os amigos se dessem conta, já estava no Instituto Médico Legal, recebendo e analisando cadáveres todos os dias, muitas vezes noite adentro, num cenário que a maioria das pessoas abominaria. Defunto, mesmo em mau estado, não sofre, ela repetia, feliz da vida.  

A Carlinha tinha feito uma opção radical, baseada numa sensação ruim que a antiga atividade lhe trazia, mesmo tendo se preparado e esforçado para chegar até aquela posição, que tanta gente queria ter ocupado.


O Ademar tinha a vida bem mais simples. Não que fosse mais pobre ou humilde. Era herdeiro da construtora do pai. Desde moleque a sua mesada tinha sido bem maior que os salários da Carlinha como oncologista ou legista, indistintamente. No grupo de amigos dele, que dificilmente teria alguma intersecção com o grupo de amigos da Carlinha, se dizia que ele tinha comprado o diploma de economista. O pai fez várias tentativas de formar o primogênito.


Mandou pros Estados Unidos, pra Austrália, pra França, pra Inglaterra, pra Alemanha. Sempre na expectativa de que ele fosse um sucessor à altura dos negócios bem-sucedidos da família, mas foram milhões de dólares gastos à toa, torrados com diversão, jogos, surfe, restaurantes caros. Depois disso, ainda colecionou problemas judiciais com reconhecimento de paternidades, violência doméstica e agressões por motivos fúteis, como brigas de trânsito e confusões em bares e boates VIP’s. A imprensa, por se tratar de um herdeiro importante, ignorou solenemente, de maneira que Ademar não era uma figura conhecida das colunas de fofoca. E mesmo que fosse, não era o tipo de jornalismo em que a Carlinha teria algum interesse.

A improvável intersecção, no entanto, aconteceu num restaurante de Ipanema, onde Carlinha tinha ido comemorar o aniversário de uma de suas incrédulas amigas e, atendendo a pedidos, contar histórias escabrosas de sua rotina de legista.


O playboy, da mesa ao lado, foi percebido por uma das amigas, que alertou sobre o olhar insistente e direcionado. Discretamente, todas – e eram umas oito – perceberam o interesse na pequena legista. A Carlinha, munida da sagacidade necessária à sua profissão e acostumada a descartar rapidamente seus pretendentes de aplicativo ao revelar seu trabalho e sua rotina, bateu o olho no vinho caro que o Ademar bebia sozinho, olhou bem nos olhos dele, olhou de novo pras amigas de uma vida toda e preferiu ficar com elas.

Não sei se já descobriu o quanto acertou na escolha...

 

Rio de Janeiro, agosto de 2025.

 

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