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Vida de Cão

Adalgisa Campos da Silva, para Criativos - CR Zine.


 

Minha genealogia é meio complicada. Minha mãe é filha da filha biológica da minha mãe...


Para facilitar, vou chamar minha mãe de Dona, porque ela acha que é minha dona, mas eu é que sou dono dela. Antes de mim, Dona teve o Zeus por doze anos. Tem gente que se refere a ele como sendo meu pai, meio que como um pai espiritual.

Pelo que sei, Zeus era um ser de luz que conviveu com Dona, transformando-a numa pessoa melhor. Assim, sou sempre grato a ele, que morreu nos braços dela, depois de um período intenso, mas curto, de sofrimento. No auge do luto, com medo de outros desgostos, ela tomou a decisão de não mais criar pessoas da minha espécie.

Só que, passados nove meses, a filha de Dona, que chamarei de Doninha, promoveu o cruzamento de sua filha Neve, minha mãe biológica, com um pai que não cheguei a conhecer. A união foi bem sucedida, e comecei a ser gestado junto com meus dois irmãos. Nessa altura, com o coração começando a cicatrizar, Dona desenvolveu o projeto de ficar com um de nós da ninhada e se preparou para me receber. Entre os preparativos, ela precisou convencer o seu namorado Maneco a me aceitar.


Maneco, que cantava vitória por não mais ter de compartilhar o quarto com seres de quatro patas, levou um baque ao saber da mudança de atitude de Dona, sem entender o que a causara. Esperta, ela usou de psicologia para predispô-lo favoravelmente em relação a mim, incumbindo-o de escolher o meu nome. Com tal responsabilidade, ele se sentiu prestigiado. Leitor das histórias do Tintin, chamou-me de Milou e, aos pouquinhos, foi se afeiçoando à minha pessoa.


Meu nascimento foi emocionante! Foi num primeiro de janeiro, dia do aniversário de Doninha. A casa estava toda linda pra festejá-la, Dona viera de Cabo Frio de helicóptero para o almoço de família e, quando se encontravam todos reunidos, minha mãe começou a sentir as dores do parto. Logo se retirou para um cantinho tranquilo e, em pouco tempo, eu via a luz. Depois de mim, veio minha irmã Cristal, mas o terceiro de nós, infelizmente, não resistiu.


Neve se revelou uma ótima mãe. Miudinha como era, amamentou-nos fartamente e nos cumulava de carinho. Doninha supervisionava tudo, provendo os cuidados necessários ao nosso bem-estar.


Cresci forte e saudável nesse ambiente, mas quarenta dias depois, veio a hora da separação. Nunca me esquecerei daquela viagem de carro dentro da caixa amarela onde Dona me levou para a casa dela. Eu, que já estava muito apreensivo com a mudança, fiquei super nervoso com os barulhos diferentes. Foi tudo meio punk. Eu não sabia o que estava acontecendo, chacoalhava de um lado para o outro dentro de um espaço estranho, nauseado e ansioso. Eu me lembrava do cheiro de Dona, mas ainda não confiava nela, embora ela já tivesse se mostrado bem carinhosa comigo.


Finalmente, o carro parou, e o barulho também. Dona pegou a caixa onde eu estava e entrou em outra caixa que subia, mas essa viagem não demorou quase nada. Em pouco tempo, Dona saiu dali para um lugarzinho que, hoje, sei ser o hall de entrada do apartamento, abriu a porta da casa, pousou a caixa no chão, tirou a grade da caixa e me soltou.


Eu estava totalmente desnorteado, olhando de um lado para o outro, tentando sentir algum cheiro amigo. De repente, reconheci uma coisa que parecia água e avancei para beber. Como foi bom!! Vi também um pratinho daquela ração que provei na casa de Doninha, mas com o estômago revirado, preferi não comer. Exausto, só pensava em me deitar aconchegado à minha mãe biológica, mas ela não estava lá. Por sorte, em cima de uma cama azul, encontrei o pano que forrava a caixa amarela onde eu viera, e me senti melhor. Sabia que era hora de dormir e tratei de me encostar num cantinho da cama para ver o que acontecia. A noite não passava e chorei bastante. De vez em quando, Dona vinha me olhar e me fazer carinho - ela também não deve ter dormido direito. Não sei dizer quantas vezes veio para o meu lado, só sei que o dia foi clareando e eu fui me conformando com a minha nova realidade.


Desde a primeira vez que voltei à casa onde nasci, sempre que vejo Neve, não sei o que dá em mim. Sou movido a me atracar com ela de tal maneira que as pessoas ficam interpretando mal. É tudo brincadeira, mas ela também não acha graça, e foge como o diabo da cruz. Dona costuma me levar quando vai lá, e eu me esbaldo de tanto correr naquele gramado gostoso. É muito bom.


Hoje posso dizer que tenho uma vida boa. Adoro a convivência com a família toda, os humanos e os de quatro patas. Somos todos unha e carne. Sendo assim, senti demais a perda de Lua, a decana do nosso lado quadrúpede. Ela faz muita falta. Agora a casa dos pais dela parece vazia, mas, pelo que sei, eles estão satisfeitos desse jeito. Cada um sabe de si, e sei que sou de boa paz, só que gato, eu não tolero, nem na TV.


Nunca vou esquecer como fiquei revoltado naquele dia das Mães em que estávamos todos reunidos e apareceu um bichano na tela. Foi demais para mim. O Caé, fotógrafo oficial da casa, até captou esse momento que retrata bem a minha aversão.


Até pouco tempo, Dona fazia longas caminhadas comigo e com o Maneco. Íamos do Leblon ao Arpoador, Maneco ficava por lá, e voltávamos só os dois. Mas desde que começou a praticar Ashtanga duas horas por dia, ela suspendeu essas excursões. Eu, já entrando na meia idade, fiquei feliz, pois me cansava muito. Agora faço passeios mais curtos, o que é bem melhor. Só espero que as coisas continuem desse jeito, por muitos e muitos anos.


 

Adalgisa Campos da Silva é escritora, tradutora e chefe-de-cozinha.

Entre os principais titulos traduzidos encontram-se Cinquenta tons de cinza. E. L. James. Intrínseca. 2012

Pequenas grandes mentiras. Liane Moriarty. Intrínseca, 2013

Depois de você. Jojo Moyes. Intrínseca, 2015

No limite da razão. Bernlef, J. Rio, Casa-Maria Editorial, 1990. p. 114.

Em busca J.D. Salinger. Hamilton, Ian. Rio, Casa-Maria Editorial, 1990, p. 229.

 

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