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Gabriel



Esse negócio de ser anjo já estava incomodando o Gabriel.


Pertencia a uma linhagem de anjos antigos, tradicionais. Arcanjo conhecido e celebrado mundo afora, citado toda hora em diversos idiomas, objeto de muita devoção. Mas era muito tempo na mesma atividade, chefiando grupos de anjos menos experientes na defesa do dia a dia de gente cada vez menos preocupada com as consequências de seus próprios atos.


Não que sentisse saudade da inquisição, onde todo mundo morria de medo de tudo e, se não temesse, morria nas mãos da igreja. Teve muito trabalho na peste, onde não adiantava enviar anjos e mais anjos, porque a bactéria não tinha religião e não os levava a sério.


Música boa na Spotify, ouça.


Nas guerras a coisa foi complicada também. Desde a antiguidade, ainda com arremesso de grandes pedras e flechas, mas especialmente no século XX, quando a Europa tentou se destruir duas vezes e o mundo inteiro acabou entrando na confusão. Não sabia exatamente o que fazer, mas no trecho entre a Alemanha e a Rússia o estrago foi terrível e nem com o reforço compulsório de pessoal se conseguiu evitar o pior. No Japão e no Pacífico o trabalho foi louco e as orientações daquela época eram impiedosas com os orientais. A mea culpa durou anos.

Antes disso, apesar de muito trabalho, não conseguiram impedir o terrível tráfico negreiro que acostumou mal aos tubarões do Atlântico e aos senhores das Américas. Estava se convencendo, aos poucos, que a carreira de anjo, construída com base na confiança de milhões de fiéis, e a posterior elevação a arcanjo, com responsabilidades ainda maiores e a função de treinar os mais novos, já não estava com essa bola toda.


Numa reunião de equipe, os outros seis arcanjos decidiram que Gabriel estava com burnout e precisava dar um tempo. Consultaram o Todo Poderoso e alguns Santos sobre a possibilidade de férias. Mas não era possível. Abrir o precedente poderia mudar toda a dinâmica da proteção à humanidade, num momento tão conturbado, com essa proliferação de armas, guerra em andamento, os americanos demandando muito... Enfim, férias estavam fora de cogitação.


Firmaram um acordo em que Gabriel ficaria com responsabilidades limitadas. Podia escolher um país grande ou um grupo de países menores e menos complicados para assumir, sem se preocupar com outras demandas. Teria à disposição uma grande equipe de anjos bem treinados e muito menos trabalho do que tinha tido historicamente. Estavam descartadas regiões em guerra, áreas onde não houvesse predominância do cristianismo, ilhas remotas, regiões geladas. O trabalho parecia fácil. Interessou-se pelo Brasil. Não precisaria ter mais de um país, porque o Brasil é enorme e até onde tinha acompanhado, pacífico.


Fez uma reunião de equipe, prestou contas ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, bem como a alguns Santos do conselho superior e postou-se em seu escritório para atender às demandas.

A nova política de proteção era mais democrática, buscava atender ao máximo, com prioridade para quem solicitasse, mas sem o antigo protecionismo religioso e as radicalizações da inquisição. João XXIII tinha feito mudanças importantes na leitura dos católicos e todo mundo ouviu, inclusive a chefia lá em cima, ao que parece. No século XXI a demanda parecia maior, mas havia especificidades com as quais os anjos ainda não haviam se acostumado.


A primeira do dia pedia proteção. Enviou um anjo imediatamente. Mas o solicitante queria ser protegido de doença sem tomar vacina, que estava disponível. Desde o final do século XIX a ideia era priorizar o tratamento ou prevenção disponível, pra minimizar essa ideia de sobrenatural. Isso estava muito ligado à idade média, atrasava o desenvolvimento da humanidade.

- Me ajude a te ajudar, disse o anjo.


Música boa no Yutube, ouca.


Mas o solicitante estava irredutível. Internado, ficou muito tempo na UTI. Sobreviveu, mas esgotou o anjo, que na volta reclamou com Gabriel sobre a dificuldade da missão.

A segunda solicitação, segundos depois, também pedia proteção. É o que mais pedem. O anjo que desceu encontrou um garimpeiro ilegal pedindo proteção para se defender de indígenas enquanto invadia suas terras. O anjo voltou sem atender ao pedido. E deu um jeito para que ligassem para a Polícia Federal.


Gabriel aprovou o procedimento, mas entendeu que, a continuar assim, teria muito mais dificuldades do que o previsto.


Para a terceira proteção solicitada foi enviado um anjo mais experiente, já quase arcanjo, tendo trabalhado em missões muito complexas, como a Guerra do Kosovo e a reunificação da Alemanha, com erros e acertos. Desceu rápido, porque parecia urgente. E deu de cara com um grupo grande atacando um padre que distribuía comida para famintos nas ruas de uma grande cidade. Depois de salvar o padre, descobriu que o pedido vinha do grupo raivoso.

Com solicitações estranhas se repetindo, Gabriel achou que eram coincidências. Não tinha trabalhado recentemente no Brasil e talvez alguma falta de prática estivesse dificultando as ações.


Entrou uma chamada chapa branca, que demanda ação imediata. Brasília. E outra. Duas superpostas. Acionou a equipe com a máxima urgência.

Em uma, deputados governistas pediam proteção para guardar uma grande quantia obtida através do chamado “Orçamento Secreto” e desviada de suas funções primárias (saúde, educação, assistência social), mas que seria utilizada em proveito próprio, eventualmente para a promoção de festas que garantiriam mais uns votos em eleições futuras. Entendiam aquilo como uma benção. O anjo incomodou-se e voltou frustrado.


Na outra, em simultâneo, o chefe do executivo promovia uma reunião entre alguns pastores e donos de clubes de tiro, na intenção de aproximar ainda mais as atividades, ambas já muito presentes nos projetos e ações do governo. Uma vez unidos, questionariam juntos as decisões da justiça, de modo a abrir caminho para tudo o que interessasse ao governo, à revelia da legislação vigente. Logo após excomungar os pastores e - numa fraqueza - xingar os armamentistas, o anjo enviado ligou pra Gabriel, o chefe, e fez o relato.


Verdade que algumas missões comuns também apareceram, mas o apego da gente simples pelos anjos parecia ter diminuído, tendo se estabelecido, em grande parte do Brasil, uma política de intermediação até então desconhecida, que envolvia pastores ricos, padres corruptos, bispos midiáticos e políticos de origem religiosa.


Gabriel entrou na sala do conselho transtornado. Não podia tirar férias, licença, se demitir ou se aposentar, mas não ia continuar com aquela função. Queria outra, menos complicada. Achou que pudesse dar conta. Não conseguiu. Indicaria outro responsável.


- Ô Todo Poderoso, meu bom, o Senhor me desculpe, mas agora só atendo pedido direto de gente humilde. Não aguento mais esses intermediários e esse pessoal maluco do Brasil que quer inverter o sentido da civilização. Não vou mandar meus meninos pra proteger arma, dinheiro roubado, violência machista, xenofobia, ataque a indígenas, desmatamento, esses absurdos. Tenho uma indicação pra pegar esses casos. Ele já trabalhou aqui…


- Alguém aí tem o telefone do Lúcifer?



Rio de Janeiro, julho de 2022.

 

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