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Fim do Mundo



Tinha acreditado em tudo, a Flávia. E temia.

Nascida em meados dos anos 1960, tinha perdido a chance de sofrer com a crise dos mísseis da Baía dos Porcos, com o assassinato do JFK e de acompanhar mais conscientemente a maior parte da guerra do Vietnã, mas antes de adolescer já tremeu com o escândalo de Watergate e entrou embaixo da cama quando a crise do petróleo por pouco não parou o mundo em 73. Achou que, com Irã e Iraque em guerra a partir de 1980, o mundo terminaria ainda antes do ano 2000, que era a data limite pra todos nós, claro. E Chernobyl?? Que horror!! Precisava de um abrigo antinuclear… E tome atentado contra o Papa JP II, terremotos, confusão na Praça da Paz Celestial...


O fim da Cortina de Ferro parecia um alívio para a guerra fria, mas o que se faria com todas aquelas ogivas? Aquilo vai explodir mais dia, menos dia, óbvio!! Em 1999, diante das evidências (não confirmadas até pelo menos às 23:59h do dia 31/12), de que o mundo não acabaria, temeu pelo bug do milênio. O mundo podia não terminar, mas todos os sistemas achariam que começaríamos o milênio de novo e isso poderia significar o retorno a tudo o que já passamos e assim – eureka!! - o mundo não resistiria a uma nova peste, a duas novas grandes guerras mundiais e a um novo Maracanazo, só pra focar em alguns eventos marcantes.


Antes disso, ela havia se descabelado com a invasão soviética ao Afeganistão e mais ainda com a Guerra do Golfo, fatos que levariam, inequivocamente, ao fim do mundo. Após a superação da virada do milênio, os atentados de Nova Iorque vieram lembrar a todos que havíamos escapado por pouco. Agora vai… Ela pensou com seus botões de crédula renitente. E 2012 tava ali mesmo, a profecia Maia não poderia falhar. Os Maias foram um povo de respeito. Os espanhóis, ressentidos, foram obrigados a destruir sua pujante civilização por isso. Nunca admitiram que eles fossem mais organizados que os europeus. Mas a profecia Maia também falhou.

Samba feminino! Ouça na Spotify!

Os amigos já tinham se acostumado com as expectativas escatológicas da Flavinha. A perspectiva do fim dos tempos era como um norte pra ela. Suas ações eram, em geral, comandadas tendo o apocalipse como deadline. Justo. Ao menos todo mundo teria o mesmo prazo.

Mas as falhas nas previsões tinham um efeito devastador. A coitada terminou relacionamentos na iminência da hecatombe nuclear e abandonou empregos diante da perspectiva do grande meteoro, cuja rota, ao que parece, foi desviada para alguma estrada vicinal do espaço, sem cobrança de pedágio. O meteoro não é bobo.

Desde 2012, sem grandes eventos que sinalizassem o juízo final, uma espécie de meta a ser alcançada, Flavinha não precisou esperar muito. No Brasil, o fim do mundo vem em ondas, como na canção do Lulu com o Nelson Motta. A chegada de 2013 trouxe consigo os blackblocks, dispostos a iniciar o armagedon pelos centros financeiros do Rio e de São Paulo.


As trombetas pareciam ter sido substituídas por bombas de gás lacrimogêneo e os cavaleiros do apocalipse aparentemente vinham do Paraná, o que contribuía para o que seria talvez a “provincianizaçāo” de um evento que deveria, é evidente, ser global. Não pelo Paraná, um território importante no mundo das commodities, mas que além de soja, milho, porcos e frangos, também tem o Teatro Guaíra, o Parque de Vila Velha, aquela estrada de ferro sensacional que desce a serra, o Porto de Paranaguá, o Museu Niemeyer, Itaipu e as Cataratas. Os personagens é que eram estranhos. Algo como se os Beatles, ao invés de Liverpool, tivessem saído de Nashville. E vestidos de vaqueiros! Mas já era alguma coisa.


Ouça a playlist instrumental da Spotify.

A forma como as coisas se sucederam até 2016 davam simultaneamente materialidade e um certo descrédito ao pessimismo de resultados da Flavinha. Se por um lado o conjunto dos acontecimentos só podia sinalizar o fim, tamanhos eram a intensidade e os efeitos devastadores, por outro, o longo desenrolar dos fatos conferia um caráter pouco objetivo ao certame. Uma coisa que os brasileiros compreendem bem, mas que a impaciência da Flavinha não admitia. Ainda que os atentados de Paris parecessem encaminhar a coisa para o epílogo, com a batalha terminal entre mouros e cristãos, ela só admitiu mesmo quando votaram aqui o impeachment da presidenta, com todos aqueles discursos pela pátria e pela família, elogio da tortura e todos os adereços. E aí foi ladeira abaixo. A prisão do Lula, especialmente considerando aquela espetacular leitura de um processo de 250.000 páginas (isso mesmo, duzentas e cinquenta mil páginas!!) em seis dias, foi o ponto culminante. A própria Flávia envergonhou-se diante dos 15 dias que levou pra ler uma tese de meras duzentas pagininhas.

E o mundo não acabava, o que só aumentava a inquietação quase insustentável de nossa protagonista.

A crise climática e a eleição do Trump, seguida pela eleição de 2018 no Brasil, foram os estopins definitivos pra aquele coração sensível. Tanto que ela nem percebeu a pandemia, quando houve finalmente uma amostra grátis do mundo sob um acontecimento de alcance global e potencialmente fatal para todos. Já se havia recolhido num sítio no interior e, enquanto plantava árvores, ouviu falar da derrota do Trump, o que não resolveria de uma vez por todas a situação, talvez não adiasse ainda mais o fim, mas soube que o velho é bem mais simpático.

A notícia da invasão da Ucrânia pelos russos chegou pelo mesmo vizinho, aparentemente interessado em manter vivas as esperanças da moça em um fim do mundo digno, nos velhos moldes previstos no passado.

Estava preparando as orações e o bunker, porque previa o fim, mas queria assistir um pouco, antes do desenlace. Saiu de lá com o vizinho chamando, avisando sobre as novas pesquisas do Datafolha pra eleição de 2022.

Abandonou o bunker. O Lula - ela já conhece - não deixa o mundo acabar. Ele vai negociar isso.

Rio de Janeiro, agosto de 2022.


 

Samba!


Arte - Regina Vate e Bill Lundberg conversam com Tuninho Galante, da Revista Criativos!




 

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