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FÉRIAS NO RIO



Acordou feliz, como acordam os que dormiram bem. E que são poucos na conjuntura em que nos enfiamos. Depois de muito tempo de tentativas e erros, tinha finalmente, mesmo em meio às crises, encontrado alguém com quem parecia se entender quase completamente. A noite anterior tinha sido magnífica, coisa de cinema, expectativas superadas no mais alto nível, da entrada à sobremesa, sem necessariamente falar do jantar. O japonês estava sensacional, como só experimentara antes numa ilhota japonesa que visitara a trabalho pela companhia onde tinha iniciado a carreira de geóloga. Comida japonesa geralmente não se relaciona com o que chamamos de comilança. Levaram isso a sério, apesar da excepcional qualidade. E deu tempo e houve conversa que ainda emoldurou docinhos franceses e generosas doses de vinho da Borgonha, terminadas com um porto envelhecido cheio de história. A concentração de bares e restaurantes em certas ruas de Botafogo possibilita uma coisa assim, desde que se tenha tempo, disposição, dinheiro e boa companhia.


Música, na Spotify!


Não entendia romance sem comida. Magra por natureza, tinha com a comida uma relação de paixão. A busca por parceiros interessados no tema não raro terminava em fartura desinteressante, com aquelas exibições de conhecimento gourmet pedante ou desconhecimento puro e simples, que levaria tempo demais pra ser corrigido. Não tinha, por princípio, preconceitos culinários, mas aprendera a diferenciar um bom prato de um equívoco que pode ter até sucesso de público sem deixar de ser um equívoco. Adorava um botequim, mas pastel encharcado de óleo nunca é bom. Uma coxinha bem feita pode brotar na lanchonete mais feia da rua. Isso não é um problema. Mas ela pode ser ruim naquele lugarzinho da moda, onde os hipsters se reúnem pra ditar tendências.


O fato é que nada parecia poder abalar aquela manhã pós encontro. Garoto boa gente. Formado, como ela, em uma universidade pública de renome, professor de outra grande universidade, mestrado e doutorado no exterior, livros publicados e uma carreira meteórica que incluía consultorias internacionais em psicologia e recursos humanos. Nenhuma afinidade profissional com ela, mas um encontro que, de tão bom, parecia reencontro. Tanto que a primeira tentativa de ligação matinal deu ocupado pros dois, que tentavam se falar simultaneamente. No telefone mesmo combinaram já um almoço pra dali a pouco, num botequim célebre pela feijoada das sextas feiras. As férias são uma grandeza. No Rio meio sem sol, mas também sem chuva, as feijoadas são ainda mais tentadoras. Em excesso, podem complicar o romance depois, mas dormir junto também é bom.


Samba, no Youtube.


Em resumo, parecia não haver contratempo capaz de ameaçar a indisfarçável alegria que envolvia o casalzinho. Luana tinha herdado de uma tia querida o apartamento na Glória. A vista de estourar a retina, incluindo o Parque do Flamengo, a Praça Paris, Niterói ao longe e ainda o Pão de Açúcar e a Igreja do Outeiro, emoldurava o que parecia ser um conto de fadas, só levemente interrompido vez ou outra pelo ronco dos aviões que pousavam e decolavam ali perto, no Aeroporto Santos Dumont.


Desceu às dez da manhã, muito mais cedo que o previsto, para matar uma vontade que a corroía desde a chegada ao Rio, alguns dias antes: bolinho de aipim de feira com caldo de cana e jornal impresso de domingo. Há muito tempo não sabia o que era isso. Não existe bolinho de aipim mundo afora, nem caldo de cana. E ler um jornal de domingo no Rio, em português, com toda a programação da cidade, os artigos de opinião, os colunistas que ela lia antes de sair pelo mundo, no tempo em que ainda era uma menina, isso não tem preço. Ou tem. O preço de capa d’O Globo. Mas a Folha também, pra não correr o risco de perder alguma coisa muito boa.

O bolinho estava ótimo, com o mesmo gosto de infância. Só não fez uma feira completa, com direito a frutas, verduras, temperos e um peixe pro almoço, porque não pretendia sequer abrir o fogão nos dias que passaria na Glória. Tinha muito o que comer pela rua, muito café pra tomar em botequins e padarias, muita salada pra encarar até nos restaurantes a quilo espalhados pelos bairros, muito a descobrir em mesas e balcões dos que restaram na memória ou dos que iriam entrar agora no portfólio afetivo.


Voltou pra casa com um bolinho extra, pro caso de a feijoada demorar. Ou, mais precisamente, pro caso de o acompanhante da feijoada demorar. Ele tinha feito questão de ir dormir na casa da mãe, em Jacarepaguá. Também vivia fora do Rio e o encontro fortuito num balcão de bar parecia programado, de tão certo. Luana agora dedicava a ele uma parte de seus pensamentos, entre nuances de temperos, o ponto de carnes e os molhos que faziam a sua cabeça nas férias. Em condições normais, ocupava a maior parte de seu tempo envolvida com problemas sérios de geotecnia, desenvolvendo métodos para evitar catástrofes relacionadas a grandes movimentos de terra provocados ou naturais. Viajava o mundo dando consultorias ou atendendo ao chamado de governos e empresas estudando possibilidades de reassentamento de populações ameaçadas por grandes barragens ou era convocada após movimentos tectônicos de baixa intensidade, com a finalidade de avaliar a possibilidade de danos decorrentes de eventuais terremotos mais fortes nas mesmas áreas. Avaliava também a implantação de grandes unidades fabris, aeroportos, cidades planejadas. Um trabalho tão específico lhe dava uma notoriedade que jamais imaginou alcançar, mas que não tinha apelo popular. Famosa entre governos e grandes corporações internacionais, incluindo a ONU, era uma jovem desconhecida para as pessoas comuns onde quer que estivesse. E agora, depois de alguns anos de dedicação intensa, se permitia uma pausa no Rio de Janeiro, o lugar que lhe trazia as melhores recordações.


Música boa, no Spotify.


O tempo, inclemente, passava sem notícia do Fabinho. Era esse o nome do garoto. Nem tão garoto assim, afinal. Os quarenta anos pareciam lhe cair bem. Tudo tinha sido tão rápido e bem resolvido que não tinham sequer trocado mensagens por aplicativos. Anotara o telefone dele nos contatos e ligara de manhã diretamente pelo plano da companhia telefônica. O mundo todo usa menos aplicativos que os brasileiros em ligações locais.


Preocupada com a feijoada, agora que ouvira badaladas de sinos anunciando o início da tarde, resolveu passar uma mensagem ao recém descoberto cara interessante da Taquara. Abriu o aplicativo, procurou o nome e já ia digitando quando alguma coisa chamou a atenção na foto de perfil.


A ampliação revelou o pior. Ele apoiava o governador, esse mesmo, que acabou reeleito mesmo com toda a carga de corrupção, violência e descaso com a população, herdeiro que é do pior que o RJ produziu nos últimos anos. A foto trazia ainda nome e número do então candidato.


Não há feijoada que resista. Não daria o benefício da dúvida. Sentia nas ruas, mesmo sorrindo sempre e alegre por estar no Rio, o quanto a população que mais precisa de governo estava sofrendo. O Rio sempre teve muitos pedintes, gente que forçosamente sacrificou a própria dignidade e se via agora obrigada a implorar por comida em portas de bares e lanchonetes. Só nunca tinha visto em quantidade tão grande, ao mesmo tempo em que o governador, aliado ao presidente, distribui benesses para amigos com o dinheiro que o Estado ainda deve à União. No exterior soube das chacinas promovidas pela polícia. A repetição de um passado tenebroso da polícia carioca. E o crescimento desenfreado das milícias, com o patrocínio dos órgãos de combate ao crime. O lado B do Rio é assustador.


Mandou uma mensagem desmarcando o encontro, alegando um inadiável compromisso com umas primas de Santa Cruz. Quer saber? Ia mesmo visitar as primas.

Santa Cruz é longe de quase tudo, mas o caminho até uma moqueca em Barra de Guaratiba é lindo.


A feijoada fica pra quando houver companhia melhor. Afinal, as férias estão só começando.


Rio de Janeiro, outubro de 2022.


 

Música.





 


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