Tênis e racismo*
Em 1992, em entrevista à revista “People”, Arthur Ashe, o consagrado tenista negro norte-americano, campeão de Wimblendon, do Aberto da Austrália e do US Open, afirmou que mais pesado que o fardo da AIDS (que contraíra em transfusão de sangue) era para ele o fardo da raça.
É difícil saber o que exatamente Ashe tinha em mente, que efeitos teria o fardo da raça produzido na sua alma. O que é certo é que o romeno Ilie Nastase, número um do mundo em 1973, costumava se referir a Ashe como negroni e chegou a chamá-lo de nigger (algo como crioulo), no calor de uma partida no Havaí, episódio relatado pelo próprio Ashe na autobiografia Days of Grace.
Com ações, omissões e reações, a dinâmica que envolve o preconceito racial acaba produzindo situações curiosas. Em uma noite de jogos beneficentes programada pela Fundação Arthur Ashe para combate à AIDS, reuniram-se antigos campeões do naipe de John McEnroe, Steffi Graf e Martina Navratilova. As famílias de Ashe e de seu velho amigo Stan Smith ocupavam o mesmo box, em lugar de destaque nas arquibancadas. Estaria tudo bem se a filha de Stan Smith, descendente de ingleses, não tivesse presenteado a filha de Ashe com uma boneca loura. Ashe, ao perceber que a televisão mostrava insistentemente a imagem da filha se distraindo com o brinquedo novo, previu a avalanche de críticas que viriam de setores engajados da comunidade negra, críticas centradas no que seria a incapacidade dele de impedir que ela assimilasse falsas noções de superioridade dos brancos. Ansioso por evitar constrangimento dessa natureza, Ashe optou pela praticidade e, discretamente, fez desaparecer a boneca da filha.
A verdade é que a coisa vem de longe. Importado da Inglaterra, o tênis foi introduzido nos Estados Unidos ainda na década de 1870. Tudo indicava que o tênis na América seria para sempre um esporte de branco, como na Europa, dadas as barreiras sociais, econômicas e institucionais que impediam o acesso de negros aos clubes de brancos, à United States Lawn Tennis Association (USLTA) e aos torneios mais importantes, organizados por essa entidade.
Mas os negros começaram a experimentar e a gostar de tênis. Em 1912 e 1916, foram fundados, respectivamente, o The Chicago Prairie Tennis Club, primeiro clube de tênis de negros nos Estados Unidos, e a American Tennis Association (ATA), que se incumbiu da realização torneios para tenistas negros.
De fato, por várias décadas, a USLTA (fundada em 1881), sem qualquer justificativa razoável, se recusou a filiar negros. A recusa à incorporação de negros ao esporte se apresentava como natural, era algo que pairava acima das discussões que mereciam destaque. Tanto assim que Allison Danzig, o mais notável jornalista especializado em tênis de todos os tempos, escreveu o texto Sphairistike, History of the United States Lawn Tennis Association (para o livro The Fireside Book of Tennis) sem aludir uma única vez à interdição dos negros pela USLTA.
O aberrante confinamento dos tenistas negros norte-americanos à ATA somente caiu às custas de muita pressão e penosas negociações. Em 1950, a fabulosa Althea Gibson, negra do Harlem, Nova Iorque, depois de passar por inúmeros obstáculos que incluíram processo de comprovação de que era mulher, conseguiu se inscrever na USLTA e disputar os seus campeonatos.
Já campeã de Wimblendon e reconhecida como melhor tenista do mundo, Althea Gibson parecia chamar mais a atenção por sua afro-ascendência do que por seus feitos tenísticos. No Brasil, o festejado Henrique Pongetti, em crônica de julho de 1958 publicada na revista Manchete, fez menção a derrota de Maria Esther Bueno para Althea Gibson e comentou que a brasileira “teve a simpática mulatinha em suas mãos e deixou a vitória escapar-lhe”.
De Althea Gibson até hoje muito se avançou. A África do Sul do apartheid foi banida da Copa Davis em 1970; tenistas negros da classe de Yannick Noah, Zina Garrison, MaliVai Washington, Jo-Wilfried Tsonga e Gael Monfils se destacaram em torneios do mais alto gabarito; e as irmãs Venus e Serena Williams, também negras, fizeram entre si nada menos que oito finais de Grand Slam.
Muito se avançou, mas o mal é resistente. Há poucos anos, Lleyton Hewitt, australiano de origem inglesa, jogando contra o negro James Blake, não se intimidou diante do grande público presente. Irritado com decisões de um juiz de linha negro, Hewitt chamou a atenção do árbitro de cadeira para Blake e para o juiz de linha. “Olhe para os dois”, bradou o australiano. Em seguida concluiu: “Me diga sobre a semelhança!”
Como se vê, se equivocaria o desavisado que pensasse que racismo no tênis é problema superado. A luta continua.
* Artigo escrito em 2015
** Brenno Mascarenhas joga tênis desde 1966
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