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Foto do escritorLeo Viana

EDITH E O BAR...



 

A Edith tinha desistido do amor romântico.

Teria sido uma decisão monocrática, radical e definitiva.


Passara a maior parte dos seus atuais 40 anos apaixonada por alguma mulher que, em sua própria avaliação, não correspondia ao seu nível de dedicação e amor. Sofreu, chorou, se descabelou. Fez promessa, serenata, carta de amor. Viagens, chocolates, sexo romântico, hard, moderado. Tudo o que imaginou estar a seu alcance ela tentou. Leu livros pra agradar, aprendeu italiano, assistiu a comédias românticas que não veria sozinha.


Do fracasso pessoal que a Talita, primeira mulher da Edith, encontrou num bar, mais pra lá que pra cá, bebendo cerveja sozinha após uma derrota do Botafogo, à empreendedora bem sucedida que a Júlia, a quarta, acabara de deixar, houve uma odisseia que talvez merecesse registro. Assim também pensavam a Dóris e a Renata, respectivamente a segunda e a terceira.

A Talita, sabemos, foi quem deu origem à série. Professora do ensino fundamental, tinha ido, também ela, afogar as mágoas de uma certa sensação de fracasso após a morte de um menino da escola numa guerra do tráfico. No bar, encontrou a bêbada bonita e amarrotada, mas com os olhos vivos e a conversa fluente. Acolheram-se mutuamente e as histórias se fundiram.


O fracasso da Edith se relacionava com a perda de amigos num acidente, involuntariamente  provocado por ela. Não conseguia mais administrar o sofrimento e tinha encontrado refúgio no álcool. Sabia que não levava sequer jeito pra coisa, já que até os 25 anos – naquele momento tinha 26 - nunca tinha tomado bebida alcoólica. Agora misturava bebidas destiladas coloridas, ficava terrivelmente mal e terminava os dias, quase sempre, em estado lastimável, chorando sozinha e com a cabeça explodindo de dor, prenúncio da ressaca física e moral inevitável, que duraria pelos menos as 24 horas seguintes.


O encontro, que começou da pior forma, sob álcool e lágrimas, progrediu para uma troca de analgésicos. Edith preferia ibuprofeno e Talita gostava mais de dipirona, mas estava sem. Ela deu o que tinha. Na segunda noite, uns poucos dias depois, Edith tinha se recuperado um pouco e estava menos arrasada com sua própria história. Com a conversa começando no início da noite, as possibilidades melhoraram. Só se separaram três anos depois, uma já em um grande escritório de direto comercial e a outra dirigindo um centro de formação para menores em situação de vulnerabilidade social. Agendas e interesses conflitantes, mas sucesso profissional, alguma bebida social e nenhuma dependência de álcool ou outros estupefacientes.


As fragilidades existenciais da Edith, no entanto, a  levariam de volta ao velho boteco, agora em situação notavelmente mais equilibrada, embora sujeita às chuvas e trovoadas que o bar volta e meia traz consigo. Não custou muito até conhecer a Dóris. Cantora da noite, linda e solitária, tinha sido convidada a estrelar um musical sobre Maysa Matarazzo. Conhecia superficialmente a história da cantora, que morreu tragicamente e cujo repertório, magistralmente interpretado, tinha muito de angústia e sofrimento.


Separada e profissionalmente derrotada numa ação milionária em que não cabia mais recurso, Edith afogava as mágoas na mesma mesa de outrora, quando avistou  a Dóris. A moça virava um inacreditável copo duplo de Campari, aquela bebida vermelha e amarga que já enganou muitos bebedores iniciantes. Ela não parecia neófita. Bebia com a segurança dos iniciados, a goles generosos e sem fazer cara feia, ainda que seus olhos já não se fixassem nas cenas do entorno, ao menos sob o ponto de vista da Edith, a duas mesas de distância. Não sabe ao certo se atraída pela beleza da moça ou por seus olhos perdidos, aproximou-se.  


A cantora, já levemente fora de si e, soube-se depois, no terceiro(!!!) copo de Campari, foi simpática e deu corda à conversa. Advogada desiludida com a profissão, tinha começado a cantar cedo, mas nunca se profissionalizara na arte, apenas para atender ao apelo dos pais. Eram, pai e mãe, advogados criminais de renome. A defesa, a contragosto, dos três primeiros criminosos que fez, rapidamente a incompatibizaram com a atividade. Voltara a cantar, o que fazia tão bem a ponto de ter sido indicada para viver a Maysa.


A felicidade e a insegurança diante do desafio a fizeram lembrar da bebida que os pais tomavam quando ela ainda era criança e que a tinha traumatizado pela cor atrativa. Bebeu, adolescente, e jurou nunca mais pôr aquilo na boca. Agora, adulta, entendia o gosto dos pais e até relacionava o bitter com a dureza da vida dos advogado. De quebra, fazia um laboratório involuntário de Maysa, cuja história também foi marcada pelo álcool.


A Edith ouviu detalhadamente a fala grogue da Dóris. O inicio de seu próprio porre não impediu que se compadecesse dos sentimentos da cantora. Não era uma especialista mas, com a generosidade típica dos bêbados, ofereceu-se para ajudar. Tinha amigos e amigas na cultura, ela mesma era uma amante da música. Usou seus conhecimentos de direito, que Dóris também tinha, aliás, para resolver contratos e, sóbrias, formaram uma bela dupla. Em três anos, Dóris tinha saído do roteiro dos bares do Centro e Zona Sul para os programas de rádio e tv, podcasts e lives, teatros e casas de show Brasil afora, catapultada pelo sucesso do musical, lotado em todas as capitais do país. Edith tinha se tornado uma agente conhecida de artistas iniciantes e vivia o amor com sua cantora, só prejudicado pela rotina de viagens e pelo sucesso, que dificultava o convívio diário.


Queria uma rotina mais comezinha e não conseguia. A separação foi menos traumática do que se imaginaria. Foi mais um fade out que um breque. Só não foi suficientemente calmo para impedir que  Edith, como sempre, voltasse ao bar de costume. Não era cliente assídua quando a vida corria simples, sem percalços. Mas os traumas e rupturas a levavam de volta e outra vez estava na área, derrubando a terceira IPA, bem amarga, entremeada por doses de destilados variados, num clichê de sofrimento do qual o dono do bar começava a desconfiar. Não tinha se tornado amigo da bêbada eventual, mas já percebera que ela vinha afogar as mágoas  de tempos em tempos.

O porre foi feio. O pior desde que iniciara a estranha rotina, a intervalos quase regulares, de dois, três anos.


O dono do bar, ao vê-la desfalecida sobre a mesa, pediu auxílio aos frequentadores para chamar o SAMU ou coisa semelhante. Não sabia se Edith tinha plano de saúde ou mesmo se algum plano a atenderia naquelas condições. Quem primeiro apareceu foi a Renata. Médica endocrinologista recém formada e que tinha ido ao bar com amigos comemorar o primeiro emprego, apiedou-se rapidamente da bêbada. Foi ela quem chamou o SAMU, apresentou as credenciais e acompanhou a Edith até a UPA mais próxima, para uma dose de glicose que a trouxesse de volta a alguma racionalidade.


A sequência variou pouco em relação às anteriores. Recuperada, fez questão de agradecer à jovem médica, convidando-a para um jantar despretensioso. O resultado foram três anos de muita felicidade e viagens. Acreditava, a Edith, que tinha alcançado o nirvana dos relacionamentos. Ela seguia fazendo a representação de artistas, incluindo a bem sucedida ex-companheira. As atividades profissionais não se cruzavam com as da Renata, que vinha se tornando uma médica muito competente, referência em sua área de atuação. O esfriamento da rotina, de parte a parte, como nas vezes anteriores, levou ao final, igualmente não traumático, do relacionamento.


O bar tinha fechado. O dono, desiludido com a violência e saudoso do Ceará, tinha ido embora. A Edith se surpreendeu ao encontrar uma lanchonete, com diversas frutas penduradas na entrada, sanduíches naturais e salgadinhos de trigo integral. As velhas garrafas empoeiradas e engorduradas de destilados tinham desaparecido, assim como os salgadinhos residentes nos balcões mal aquecidos. Os bêbados, eventuais ou fixos, também tinham mudado de endereço. A surpresa se tornou arrependimento por não haver acompanhado decentemente o desenrolar da história daquele lugar em que sua vida já tinha mudado algumas vezes.


Pediu um café ainda atônita. Não sabia se chorava, ria ou simplesmente ia embora. Não adiantaria se indispor com os novos empregados ou donos do lugar. Atravessou a rua e sentou num bar de onde se via o movimento no antigo ponto. Olhando desolada, entre uma cerveja e outra, não percebeu a aproximação da Júlia. Julinha era guarda municipal. Tinha vindo autuar o estabelecimento, que não tinha autorização para manter mesas na calçada. Simpática, apesar do trabalho que não a fazia querida entre os autuados, abordava os frequentadores, informando sobre o que tinha ido fazer ali e instando-os a se posicionarem dentro do estabelecimento. A primeira troca de olhares com a Edith foi definitiva pra ela. O misto de seriedade e doçura fez Edith se derreter. Mesmo assim resistiu firme, atendendo à exigência da Júlia, sem demonstrar o interesse que, desde o primeiro segundo, mexia com ela. Guarda municipal... Atividade pouco usual. Nunca antes conhecera uma. Não se imaginaria, em nenhuma hipótese anterior, apaixonada por uma guarda.


Meio bêbada, ainda era advogada. Deu seu cartão para a Júlia, assumindo sem consulta a defesa do bar sem nem conhecer os proprietários. Julinha não se abalou, mas diante de uma bêbada de olhos bonitos, evitou a discussão  e guardou o cartão.


Nem se tornou freguesa do bar e nem teve mais notícias da Júlia, ainda que tenha peregrinado por bares do entorno, na expectativa de rever a guardete que a tinha tirado, involuntariamente, da tristeza de perder o bar da vida.


O número desconhecido no telefone normalmente não seria atendido, mas num lapso de sorte, atendeu e ouviu o alô de uma mulher. A Julinha tinha encontrado o cartão da advogada num caderno e estava precisando agora de uma, para a ação que queria mover contra a faculdade  particular onde concluía o curso de Educação Física.


Perguntou se ela lembrava da guarda que a abordou num bar em Copacabana. Fez que não, mal disfarçando a euforia. Fez a defesa, ganhou a causa e, last, but not least, passou os últimos quatro anos casada com a Júlia , mulher de infinitas qualidades que, além de grande companheira, deixou a guarda por uma bem sucedida carreira de preparadora física em grandes clubes de esportes coletivos.


O fim se desenhou de modo um pouco diferente. A Júlia apostava no relacionamento. Após ter sido convocada pra trabalhar nos jogos olímpicos, avisou que ia se preparar pra ter um filho, um projeto que alimentava havia tempos e no qual acreditava que o próprio tempo seria o seu maior inimigo.


No quarto casamento, Edith não estava feliz nem triste. Gostava muito da Júlia, mas tinha medo do fim e da possibilidade de voltar a sofrer. Mais ainda se tivessem um filho.

Acabou por tomar a desastrada iniciativa de terminar o relacionamento. Saía do casamento, como sempre, maior do que entrara, mas tão abalada psicologicamente como das outras vezes.

Foi a Renata quem tomou a decisão de reunir as outras três.


Sentadas num bar, decidiram manter a proximidade e acompanhar, à distância segura, os passos de Edith.

As quatro seguiam suas carreiras e, com a exceção da Júlia, mais recente, já tinham novos relacionamentos.


Edith, monitorada sem saber, parecia ter mesmo  abandonado o amor romântico. Acreditava nele, mas aparentava não se sentir capaz de manter uma relação baseada nessa utopia de poetas, músicos e escritores. Talvez fosse mesmo insustentável.


Da última vez que as quatro se reuniram, a Júlia trouxe a notícia mais forte: Edith, após ganhar uma grande ação, tinha comprado a lanchonete e feito a reforma que a transformaria novamente em bar, inclusive com a recuperação de uma cenografia muito semelhante ao que havia antes. Justo ela, Júlia, que nem tinha conhecido o bar.

Ao que se sabe, é ela mesmo quem dá expediente atrás do balcão, lápis na orelha e tudo, mesas pelo salão, garrafas de destilados, cerveja gelada e salgadinhos um pouco melhores que os antigos.


Dizem que está namorando a cozinheira, numa clara relação de interesse, ao menos sob a ótica das ex.

O que se sabe mesmo é que, bar fechado, altas horas, ela se senta na mesa que fica na posição da que ocupava no passado e bebe sozinha.


Só não corre o risco de ser abordada por alguma outra alma sofrida.

 

Rio de Janeiro, abril de 2024.


 

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