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Dona Zeli


Quando conheci Dona Zeli ela já tinha parido três crianças, mas tinha um coração grande o suficiente para incorporar mais uma filha à coleção e abrir as portas da nossa casa a toda família e a cada pessoa amiga que precisasse, o que acabou fazendo com que aquele cantinho de mundo ficasse conhecido como o Solar dos Lago.


Assim, lá estavam Vanda, Nal, Graça e Kakalo para me receber no dia em que nasci.

Desde criança eu aprendi a ver minha mãe como um tipo de super-heroína, a mulher que não precisava dormir e nunca parecia cansada.


Já de manhã cedinho ela dava início ao que parecia ser uma jornada interminável de trabalho, organizando todo o funcionamento da casa, sem nunca tirar os olhos dos filhos, a quem defendia com unhas e dentes sempre que necessário (às vezes mesmo quando não necessário, como no dia em que em que eu perdi minha pipa numa justa batalha aérea e ela acabou correndo pelas areias de Copacabana até alcançar o menino que gritava "pipa no ar não tem dono" e tomar de volta a voadora com o veredito "essa aqui tem dono sim, e é o meu filho").


Terminado esse turno exaustivo, ainda tinha forças para sair com papai e encarar uma boa rodada de papo com amigos de rádio, teatro e música, em lugares onde a boemia intelectual pontificava, como os restaurantes Fado e Fiorentina.


Comunista militante e feroz lutadora contra qualquer manifestação do fascismo, Dona Zeli era ao mesmo tempo uma das criaturas mais doces que conheci, não economizando em gestos e palavras de carinho e solidariedade a quem precisasse e merecesse.

Os reveses da vida nunca lhe tiraram o humor inteligente e inusitado, como naquela manhã em que a surpreendi engatinhando na sala - ao perceber minha surpresa ela simplesmente falou: "estou tentando entender porque o Pedro (filho mais novo da Graça) se diverte tanto engatinhando, é horrível".


Tampouco perdia a disposição que a fazia mudar sozinha todos os móveis de lugar (inclusive a enorme estante repleta de livros) durante a madrugada.


Ainda hoje, quando penso na minha mãe lembro de um trecho do livro "Bagaço de Beira Estrada"em que Mário Lago definiu o impacto causado pela "velha", como ele carinhosamente a chamava, e que tomo a liberdade de pegar emprestado:


 

Kismet, como dizem os mulçumanos, e que o bondoso Alá os abençoe pela palavra linda que inventaram.

Tinha que ser, estava escrito, e não terá sido porque velha Chica falava na necessidade dia sim, dia também.


Razão tem o Drumond de Andrade ao dizer que "tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra", e aconteceu numa redação de jornal.


Mas foi tudo tão depressa, tão sem tempo de adivinhar, que talvez, numa encarnação remota, eu lhe tivesse oferecido tâmaras maduras às margens do Nilo, eu aguadeiro em Tebas e ela princesa em viagem ou filha de um felá morrendo de fome.


Talvez tivéssemos cantado e dançado juntos "La Carmagnole" durante a execução de um traidor da Revolução Francesa.


Antes do encontro na redação, talvez ela tivesse sido uma estudante russa anarquista e usássemos o mesmo samovar para fazer um chá ralo e sem gosto nos campos gelados da Sibéria.

De repente, surgiram aqueles olhos, que Zeli, a companheira, começava nos olhos continuando num corpo magro-magro, capaz de ir além do espaço se ventasse com mais força.


Foi questão de olhos nos olhos e o resto foi uma questão de tempo, que dispôs as coisas para a primeira palavra, provocou o primeiro aperto de mão, andou mexendo nos ponteiros para que os encontros fossem ficando cada vez mais perto um do outro, até que um dia achou de ter chegado o momento de lembrar a pergunta:


- Quer casar comigo?

- Topo.


Até a próxima esquina.


 

Música.




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