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AUSÊNCIAS


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Léo Viana

 

De pé, cambaleante diante do vaso, lembrava de um passado mais glorioso. Aquele jato intermitente, intercalado por gotas que caem verticalmente entre os pés e a latrina, já foi um vigoroso derretedor do gelo dos mictórios de boates e restaurantes ou — mais remotamente, ainda na infância — usado como arma de destruição em massa em castelos de areia e formigueiros.

 

As reclamações frequentes de cuidadoras e faxineiras não surtiam efeito. Tinha medo de se sentar no vaso para urinar e eventualmente fazer sujeira ainda maior, que incluiria a borda e o tampo, como acontecia vez por outra, quando a necessidade o obrigava a usar o assento.

 

Ah, o tempo. Chegava agora, aparentemente, àquele momento que Cartola chamou de “o inverno do meu tempo”, depois de tantos verões e primaveras. A lista de telefones, guardada no celular de números e letras grandes — os únicos que conseguia enxergar — trazia mais nomes de médicos que de amigos. Uns poucos que restaram sequer tinham condições de falar ao telefone de modo inteligível. Dentre os mais próximos e ainda vivos, era o único que mantinha alguma razão, além da audição, condições mínimas para algum diálogo. Não sabia Libras, e escrever mensagens naquele pequeno aparelho seria algo quase sobrenatural, apesar do tamanho generoso das teclas.

 

Mesmo a família, que nunca foi grande, agora era ainda menor e mais dispersa. A única filha vivia viajando o mundo em missões ecológicas e poderia estar agora na Groenlândia ou na Malásia, sem aviso prévio. Passara dos cinquenta com a mesma vitalidade que tinha quando começou o curso de Biologia, aos dezoito. Com a morte da mãe e o relacionamento instável com o pai, empenhou-se numa carreira acadêmica razoavelmente bem-sucedida, mas preferiu a ideia de vagar pelo mundo em programas de proteção à natureza. Não vinha ao Brasil havia mais de três anos. Eventualmente ligava no aniversário dele, mas nem sempre. Era independente ao extremo.

 

Ele também não tinha mais os irmãos. Um deles morreu ainda bem novo, por irresponsabilidade própria: colocou o velho Opala do pai num racha e acabou tendo que ser enterrado em partes pequenas, irreconhecíveis.

 

O outro, menos irresponsável, mas machista e negacionista, foi vencido por um câncer na próstata, aos sessenta e cinco, incapaz que era de permitir os necessários exames preventivos.

 

Agora contava noventa anos. Tempo demais até para suas estimativas mais otimistas. Colecionou histórias — algumas interessantes e outras que mereciam ser esquecidas. Mulheres, exageros diversos, viagens planejadas ou não, jogos de futebol, carnavais. Temas que se intercalaram e criaram interseções inusitadas. Tudo vinha numa espiral de lembranças que chegava a assustar, como o “filme” que os moribundos — dizem — assistem em seus últimos momentos. Não se considerava moribundo, apesar da situação. Conseguia ir de pé e sozinho ao banheiro, comia sozinho e escolhia sozinho os canais na TV. Talvez esse documentário que assolaria os moribundos às vésperas do ocaso seja uma invenção da literatura. Não havia como conferir, e não sabia de nenhum moribundo que houvesse efetivamente contado a história.

 

Os amigos tinham, em grande parte, já desaparecido da face da Terra. Alguns mais idosos, outros menos. Os que restaram viviam, como ele, as agruras da velhice e seus anexos: Parkinson, Alzheimer, demências, surdez e mobilidades prejudicadas de origens variadas.

 

A viuvez solitária no apartamento já completava vinte anos. Tinha sido muito feliz com a mulher, apesar da mania de fazer coisas sozinho — talvez levado pela própria indisposição da Azaleia (sim, ela tinha nome de flor!) para acompanhá-lo nas aventuras. Era esse o motivo da dificuldade que a filha tinha com ele. Achava, injustamente, que ele traía a mãe quando se ausentava por longos períodos. Nunca foi o caso, mas a juventude é intransigente, e a filha nunca deixou de ser jovem.

 

Em sua juventude, aí sim, não tinha compromissos emocionais. Era egoísta e “bicho solto”, como se dizia naquele tempo — e até hoje.

 

Beneficiado por uma inteligência um pouco acima da média e boa formação cultural em casa, era sedutor ao extremo. Não havia quem não caísse em sua conversa afiada e sob medida para cada caso. Foi assim que seduziu meninas de escola, mulheres casadas, professoras, atendentes de lojas, recepcionistas de consultórios. Um tipo de Don Juan suburbano, perseguido por maridos e pais irados, mas igualmente seduzidos pelos argumentos do jovem, e que passavam de revoltados a amigos em alguns minutos de conversa. Fazia de tudo por pura satisfação pessoal — um desejo sexual sem limites e o orgulho da própria capacidade de sedução. No fundo, talvez até imaginasse que levava alguma alegria a todas aquelas pessoas.

 

Mas o tempo passou, levou a juventude e trouxe Azaleia. Com ela vieram a paixão — antes desconhecida —, o amor estável (ainda menos familiar que a paixão) e o sofrimento, novidade absoluta! A Azaleia era psicóloga e tão sedutora quanto ele. Conquistou facilmente aquela alma indomada. Tinha as armas certas — o instrumental teórico e prático pra quebrar aquela pedreira.

 

A filha nasceu logo. Tornaram-se um casal sem surpresas, com aquela felicidade de comercial de margarina: lindos, sorridentes e bem-sucedidos. Até que começou a desconfiar da Azaleia, tal qual um Bentinho contemporâneo, sofrendo por uma Capitu idealizada.

 

Foi aí que iniciou a rotina de longas viagens solitárias, diante da impossibilidade de provar algo contra Azaleia. Ganhou a ira da filha, manteve a paixão da mulher. Ela, sempre muito independente, entendia perfeitamente a necessidade de pausas no relacionamento, de quebras da rotina doméstica, facilitadas pela condição financeira privilegiada. Jamais houve traição de uma parte ou de outra. Envelheceram juntos.

 

Até que Azaleia adoeceu e se foi.

 

Não sabia se ela o havia traído ou não, mas tinha consciência do tanto que estivera ausente, da raiva que a filha cultivava, do quanto tinha sido egoísta no passado — e mesmo depois de apaixonado.

 

Não havia mais o que fazer. Até a memória, da qual tanto se orgulhava, agora dava sinais de intermitência. Do mesmo jeito que a urina, que há vários minutos se dividia entre chegar ao vaso em jato ou cair verticalmente em gotas entre os pés e a latrina, pra desespero de cuidadoras e faxineiras.

 

Se mantém alguma coisa ainda, é só o orgulho de ainda conseguir comer sozinho, vir ao banheiro sozinho e escolher os canais de TV.

 

Rio de Janeiro, outubro de 2025.


Cultura, Criatividade e Tecnologia: A Nova Tríade da Inovação Brasileira


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