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FILA

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Era o dia de São Francisco de Assis. Fila na praça pra levar os bichinhos de estimação pro padre dar aquela santa borrifada de água benta. Naquele tempo, ao menos no Brasil, eles ainda não eram pets. Já havia lojas de ração e coleiras, mas não eram grandes petshops ainda. E veterinários também havia, mas com um pouco menos de glamour.


O Arquimedes acompanhava o seu então raríssimo Border Collie,  que só faltava falar. Ou talvez até falasse em casa, quando ninguém estava olhando. Indiferente ao mundo externo e absorto em seus próprios pensamentos, possivelmente mais complexos que os de muita gente, o cachorro preto e branco esperava pacientemente na fila.


O Arquimedes, seu tutor (na época ainda “dono”) era um cara de ideias simples, apesar do nome pomposo. A mãe tinha achado lindo o nome e insistiu pra que o pai registrasse assim o terceiro filho. O Mad, apelido dado pelos amigos ainda na infância, era bem mais comum que seu nome e abandonou os estudos depois de concluir o nível médio, quando já dominava a informática do seu tempo. Terminou por se tornar um grande consultor de TI , como se diz hoje, mesmo sendo relativamente limitado emocional e mesmo cognitivamente. O cão foi o presente especial de um empresário bem sucedido após um serviço magnificamente prestado e sobejamente remunerado, diga-se. 


Na mesma fila, imediatamente depois dele, a Sabrina tentava conter o gato, um siamês temperamental e avesso a interações sociais, inclusive aquela, com diversos outros seres inferiores, bípedes, quadrúpedes, alados e etc. Não bastasse a Sabrina, que ele era obrigado a aturar noite e dia e que nem sempre lhe dava a comida e o conforto merecidos. Além de ter patrocinado a suprema maldade de que foi sua castração. Tinha até certo afeto por ela, mas o convívio permanente era pesado demais. Queria um pouco mais de espaço privativo.


A Sabrina, ele entendia, era absolutamente independente, mas insistia, vez ou outra, com carinhos desnecessários, colo e coisas assim. Talvez isso viesse do fato de ela ser uma grande cientista e pesquisadora solitária,  apesar do reconhecimento internacional e da legião de admiradores. A casa era relativamente tranquila, mas não raro a Sabrina precisava que alguém pusesse a sua comida ou limpasse a sua caixa de areia, porque ela viajava muito para eventos científicos. Ao menos ninguém estranho dormia lá, o que garantia a sua privacidade felina. Mas todo ano era essa chatice dessa fila. E ainda aquelas gotas d’água que não pareciam fazer qualquer sentido em seu mundo de gato.


Na agonia da fila, a Sabrina notou o olhar insistente do Arquimedes. Chat, o gato (com a pronúncia francesa, chá) , também notou. E mais que isso, gostou da indiferença do cachorro que acompanhava aquele humano com cara de bobo, como aliás pareciam ser todos os humanos. A maioria dos cães, ao vê-lo no colo de sua dona, esboçava um misto de alerta e raiva, provavelmente inveja, demonstrada com rosnadas e tentativas de alcançá-lo, 6 nem notar. Perfeito! O cachorro ideal existia! Sabina tentou outras vezes, mas chegavam filhotes absolutamente imbecis que eram devolvidos logo por se envolverem em confusões com o Chat.

O Arquimedes percebeu que Sabrina correspondia aos olhares. Recentemente aposentado, fora da “vida corporativa” típica de quem mexe com informática e solteirão até então convicto, notou um “não sei quê “ na Sabrina. 


Sabrina, por sua vez, tinha se dedicado à carreira e vivia o auge de sua produção científica e reconhecimento, mas sentia falta de companhia e carinho. Tinha construído uma vida celibatária. O cara com o cachorro parecia boa gente. O cachorro, aliás, também. O gato pareceu, a partir de certo momento, comportar-se surpreendentemente bem na presença de um cachorro.

A conversa foi provocada por um terceiro animal, um papagaio falador trazido por uma velhinha e que falou palavrões horríveis bem na frente do padre, para constrangimento de sua dona e de outras velhinhas, maioria absoluta na ansiosa fila da benção.


Saíram dali direto pra um chope, depois da bendição dos bichos. Descobriram que eram vizinhos. Passaram a se frequentar. Gato e cachorro se entenderam.

Resolveram envelhecer juntos.


Muitos anos depois, estão na terceira parelha de gato e cachorro. O Arquimedes não é nenhum gênio, mas faz bem pra Sabrina. Ela é, mas isso, no caso específico, importa pouco.


Milagres conjuntos de São Francisco e de Santo Antônio. 

 

Rio de Janeiro, outubro de 2025.



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1 comentário


Sonali Maria
Sonali Maria
06 de out.

Belo e fluente texto do Leo Viana! Milagres ecológicos de São Francisco...

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